Descansem em paz
Luciano e Tatiana Palm
"Não é demonstração de saúde ser bem ajustado a uma sociedade profundamente doente!" Krishnamurti
O modelo das sociedades ocidentais, inspiradas no espírito iluminista e esclarecido, na vontade de razão e ordenamento, modeladas pela racionalidade científica e fundamentadas num economicismo irracional e desenfreado, dá claros sinais de adoecimento e de colapso. Nestas sociedades, como bem descreveu Marx, o trabalho é considerado apenas um tempo de morte (e não a realização das forças produtivas dos seres humanos), trabalha-se unicamente para pagar as contas no final do mês e para garantir a compra de entulhos e bugigangas tecnológicas que, na maioria das vezes, servem tão somente para demonstrar a adaptação a uma evolução e a um progresso suicidas. O lazer transformou-se em desculpa para a auto-destruição e sinônimo de auto-flagelo (drogas e bebidas regam esta triste marcha fúnebre), as crianças não brincam nem sonham mais (brigam e violentam-se como forma de diversão).
O progresso científico e tecnológico, por um lado, proporcionou imensuráveis melhoras no que diz respeito ao conforto e a qualidade de vida dos seres humanos, o que pode ser observado pelo controle de epidemias, descobertas de vacinas e de cura para diversas doenças até a pouco incuráveis e no consequente aumento da expectativa de vida da população mundial. Além dos instrumentos e utensílios que facilitaram a vida prática nos transportes e na vivência doméstica. Porém, por outro lado, o domínio da técnica também teve como consequência a brutalização das pessoas e o quase aniquilamento das características propriamente humanas, a violência é o reflexo prático do sufocamento humano pela técnica. Mesmo a infância, tradicional palco dos sonhos e da imaginação, já é atualmente invadida pelo espírito destrutivo que rege nossa civilização, os ídolos, jogos e brincadeiras infantis expressam uma ânsia de sangue e de violência inadmissíveis para esta faixa etária, vivemos um empobrecimento do imaginário e da espontaneidade. Em nossa civilização, as pessoas sentem-se extremamente a vontade para xingarem-se e se ofenderem, contudo, sentem-se constrangidas para demonstrações de gestos de carinho e de fraternidade, eis a demonstração prática da brutalização humana resultante do domínio da técnica.
Diante dessa realidade podemos pensar algumas reações e atitudes possíveis. Uma delas é o conformismo derrotado e nihilista que não consegue enxergar alternativas além da atualmente dada. Outra poderia ser a atitude apocalíptica que vê no atual estado de coisas o sinal do fim dos tempos e, nesse sentido, buscam comumente refúgio em templos e discursos redentores, afinal, não encontrando mais meios neste mundo o que resta é a busca de mundos no além. Outra atitude ainda, poderia ser vislumbrada a partir de uma postura positiva e revolucionária, que encontra forças e vias para a criação de uma nova ordem, uma ordem alternativa a atualmente imposta. Um modus vivendi que colocasse a sustentabilidade e as necessides humanas a frente das exigências do mercado e da economia, um modus vivendi que invertesse a lógica dos excessos materiais e da pobreza espiritual.
Recentemente Habermas dissera que o ocidente abandonou cedo demais a questão da religiosidade, dissera isto principalmente em face dos acontecimentos do 11 de setembro nas torres gêmeas em NY. Contudo, se ampliarmos o espectro e pensarmos não a questão da religião, mas a questão mais abrangente da espiritualidade, se conseguirmos perceber que não somos donos do planeta e do que há nele, se percebermos que não adianta nada criarmos fantasiosas ilhas de bem-estar em meio a oceanos de miséria e sofrimento, quando percebermos que todos estamos inevitavelmente conectados e que mais profundamente estamos conectados não apenas entre nós e nossa humana condição, mas conectados com a natureza, os mares, as florestas e tudo o mais. A partir desse momento, teremos a nítida percepção da necessidade do resgate de uma mística que desenvolva uma espiritulidade que resgate esta nossa estreita conexão com tudo o que há em nossa volta. Pois, como disse o líder indigena Seatle "quando a última árvore for cortada, quando o último rio tiver secado e quando o último peixe for pescado, vocês perceberão que dinheiro não se come".
O resgate de uma tal espiritualidade e o desenvolvimento desta mística tornaria possível igualmente o resgate da humanidade do humano, ou seja, dos valores que atualmente foram atropelados pela técnica, o respeito, a solidariedade, a fraternidade, em uma palavra, poderíamos dizer, o resgate do amor, por si, pelos outros e por tudo aquilo que por hora se encontra sob nossos cuidados, o que inclui a natureza e todas as suas riquezas. Afinal, "no se pode ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de amar, de criar. Não se pode: é pecado, é proibido. Não é possível adiar a vida. E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário, vamos ficar ótimos e incomodar bastante" (Caio Fernando Abreu).
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