Diálogos com Nietzsche em Sorrento
Tatiana Palm
Afinal, quem somos nós? O que entendemos quando dizemos “eu”? Com o auxílio de duas categorias aparentemente similares aceno para aquilo que expressa o que somos. Ouso dizer que podemos nos definir como alma e espírito. Entendo alma como sinônimo de vida e o espírito como razão (ratio). Se resgato o pensamento do filósofo que por aqui passou, digo: eu sou o apolíneo e o dionisíaco. A palavra “dionisíaco” expressa o ímpeto para um ir além do cotidiano, da sociedade, da realidade, um lançar-se para além das ocupações cotidianas e das coisas comuns. Um ir além apaixonado e doloroso em direção ao obscuro, incerto, desconhecido e não familiar. Um encantador dizer sim à vida. O apolíneo, ao contrário, expressa o ímpeto de ser um indivíduo típico, estacionado, resignado e satisfeito com os pequenos progressos em sua ascenção social e pessoal. Os pequenos progressos que conduzem a comodidade. O apolíneo representa a vontade de ser um indivíduo mediano, comum, medíocre com uma vida igualmente mediana e insignificante, mas, com certa ordem e previsibilidade. Isso, em outras palavras, significa: a força apolínea faz querer a segurança, a estabilidade, o controle de tudo e (até mesmo) de todos, mas, na verdade, tudo não passa de ilusão.
Dionísio: sensibilidade e crueldade, desmedida e criação. Apolo: racionalidade e ordenamento, controle e comodismo. Parece que no antagonismo essas duas forças se complementam assim como o masculino e o feminino na perpetuação da espécie. O que tradicional e culturalmente vemos é o predomínio do apolíneo sobre o dionisíaco e, por isso, podemos dizer que vivenciamos uma época em que o espírito (razão) vige como adversário da alma (vida). E, como diz Heidegger, o que o espírito “cunhou e criou para si no interior da técnica, das ciências, nas relações mundanas, em todas as transformações do ser-aí, simbolizada através das grandes cidades, se volta contra a alma, contra a vida e a oprime …”. Então, se por um lado, o apolíneo representa a nossa evolução técnica e científica, por outro, representa o nosso empobrecimento: nunca antes nos sentimos tão indiferentes ou vazios ou entediados, pois o que representa a vida mesmo não mais queremos ou desejamos, apenas negamos.
Essa contrariedade (entre apolíneo e dionisíaco) que se mostra no exterior está igualmente no interior. Por isso, ouso afirmar que somos uma constante luta de forças: o racional (apolíneo) e o “irracional” (dionisíaco). Na maioria dos casos, o racional sufoca o “irracional”. Será isso sinônimo de saúde? Não seria o contrário? Suspeito que de tão e orgulhosamente racionais estamos doentes. Eu presencio em mim sinais de melhora: em meu interior fala o apolíneo e grita o dionisíaco. Por um lado, quero casa, carro, comida, dinheiro e filhos, “coisas” comumente consideradas normais para a nosso situação social. Nada mais natural já que a vontade de querer (poder) foi educada pelo apolíneo. A bildung apolínea nos direciona a ser isso e não outra coisa fora de tais padrões. Isso, no entanto, não matou o instinto (vontade) de vida. Ele se manifesta com fúria e o espírito não consegue mais domá-lo. A alma sabe-se finita e por isso a sua vontade do incerto, estranho, do novo ao invés de uma vontade de medida, de ordenação, acomodação e sossego. O dionisíaco exige a reinvenção de si mesmo, a paciência consigo mesmo, a redescoberta do que se é capaz de fazer, o enfrentamento das dores, desabores e da solidão, um constate exercício de desprendimento do que nos ensinaram a agarrar. Ele revela que se algo nos prende é somente porque nós mesmos permitimos tal aprisionamento. A coragem é dizer não aquilo que mata e sim aquilo que fortalece. O equilíbrio é o meio-termo entre essas duas forças antagônicas que estão em constante tensão. Isso é possível?
Fantástico, muito bom!!! O que há a nossa volta senão excesso material e pobreza espiritual, miséria na abundância, fome com mesa farta, etc.. O progresso da técnica parece ter se dado as custas do aniquilamento do espírito, o excesso de razão e ordenamento desncadearam o caos social e a neurose coletiva. Um mundo em que pessoas se sentem extremamente a vontade para se xingarem e se ofenderem e, por outro lado, se sentem tão antiquadas e rídiculas para trocarem gestos de carinho e amor não merece ser levado a sério, se quer, merece ser vivo, uma nova ordem é o imperativo dos novos tempos, a possibilidade deles inclusive depende disso.
ResponderExcluirQue bom que voce gostou e acima de tudo compreendeu o que eu quis expressar.
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