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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Gira-mundo

Gira-mundo: O eterno retorno
Luciano Palm
"E se um dia ou uma noite um demônio se aproximasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ´Esta vida, assim como tu vives até agora e como a viveste, terás que vivê-la ainda inúmeras vezes. E não haverá nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e cada suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!´ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ´Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!´ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ´Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?´ Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" Nietzsche, A gaia scientia (1882)
           1882, fiz questão de pôr a data da longa (mas significativa) citação que serve de epígrafe para esta reflexão. Você estava certo meu querido companheiro alemão, apenas os tempos vindouros teriam ouvidos capazes de lhe compreender. Sobre o caráter extemporâneo? Bem, acredito que este seja próprio de todos aqueles que ousem, mesmo dentro da roda-viva da existência, alçar vôos mais altos e como águias observar, se admirar, rir e chorar das baixezas e grandezas, das tragédias e comédias, que acontecem aqui e acolá, em todos os recantos do universo. Mas, vamos em frente, jogar o jogo é a única forma de estarmos vivos e pulsantes, brincar é única regra, mesmo que nos machuquemos as vezes, pois, algumas brincadeiras são deveras perigosas (e por isso mesmo instigantes e atraentes (risos)).
           O aforismo da Gaia Scientia, de 1882, em que Nietzsche expõe claramente o seu conceito do eterno retorno do mesmo, um de seus conceitos fundamentais, foi, por muitas vezes, criticado e mal-compreendido (assim como muitos aspectos de sua filosofia), inclusive, em alguns casos, fora motivo para o apontamento de sinais de suposta insanidade do filósofo. Contudo, atualmente acredito que possamos poupá-lo de tais acusações levianas e encontrar fortes razões para refletir seriamente sobre este conceito. Mesmo nas ciências, embora este não seja necessariamente o melhor fundamento para justificar idéias nietzschianas (risos), podemos encontrar respaldos para o conceito do eterno retorno. Nesse sentido, lembro da teoria da Física contemporânea do Big Crunch. Se partirmos do princípio de que o universo é um corpo finito (composto por um número gigantesco, mas finito de elementos), transcorrido um certo tempo, todas as combinações possíveis deste número de elementos básicos seriam novamente repetidas de forma infinita.
            Imaginemos o universo como um grande baralho cósmico (com um número gigantesco de cartas, mas finito) então, o número de combinações advindo da mistura dessas cartas seria igualmente finita e se repetiria através da eternidade. Tal teoria seria considerada absurda na época de Nietzsche, mas é atualmente a única hipótese capaz de justificar a conservação de energia no universo. Assim, um universo finito (com um número finito de elementos) se expandiria (através de um Big Bang) para novamente se contrair (através de um Big Crunch) infinitamente, conservando sua energia. O número de combinações desse universo seria algo inimaginável, mas seria, ainda assim, finito, e, certamente teria de ser repetido infinitamente. Desse modo, todas as mais insignificantes variantes possíveis na vida de qualquer pessoa, na vida de qualquer animal, de qualquer planta, de qualquer átomo, de qualquer elétron, seriam vividas da mesmíssima forma eternamente.
           Mas deixemos por hora a Física e o universo de lado, pois, para nós são os significados humanos e as implicações humanas que nos interessam mais intimamente. Nesse sentido, segundo o conceito do eterno retorno do mesmo, nada caminharia em linha reta. Nada teria um começo, meio ou fim. Nada teria um princípio nem um objetivo. Tudo seria apenas um infinito e gigantesco ciclo de repetições e de combinações finitas. Sempre estaríamos em algum ponto intermediário desse ciclo. Nunca chegaremos a um fim. Nunca houve um começo. Estamos eternamente condenados a repetir exatamente o que até aqui já fizemos, vivemos, sentimos, etc..
       Contudo, qual seria o exato significado dessa incessante repetição para nós seres humanos? Bem, acredito que possamos compreender isso da seguinte maneira: O eterno retorno apresenta a idéia de que na vida e em nossas vivências alternamos polos num eterno ciclo de repetição. Criação e destruição, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, tudo acontecendo e retornando incessantemente. Porém, tais polos não são opostos, pelo contrário, eles se complementam, pois, são faces de uma mesma realidade, fragmentos de um único jogo.
             Ao contrário do que poderíamos a primeira vista pensar, a temporalidade como a percebemos não está contida no eterno retorno (ele é e não é simultaneamente um conceito da temporalidade, parece complicado, mas é assim mesmo (risos)). Basta lembrarmos que para Nietzsche o único sentido da vida, é a sua completa falta de sentido, a realidade não tem uma finalidade, nem um objetivo a cumprir, e, por esse motivo, as alternâncias de prazer e desprazer se repetem durante todo o ciclo da vida. O eterno retorno não se refere a uma demarcação temporal cíclica, exata e cartesiana, mas as variações, conturbações, tropeços e alegrias, que se complementam e dão o colorido para a vida.
           Desse modo, o eterno retorno do mesmo nos conduz a uma indagação radical e decisiva: amamos ou não amamos a vida? Se tudo retorna sempre e incessantemente, isso seria uma benção ou uma maldição? Amamos a vida a tal ponto de a querermos viver, mesmo que tivéssemos de vivê-la infinitas vezes? Sofrendo e gozando da mesma forma e com a mesma intensidade? Seríamos capazes de amar a vida que temos - a única vida que temos - a ponto de querer vivê-la tal e qual ela é, sem a menor alteração, ao longo de toda a eternidade? Temos tamanho amor fati (amor ao destino, outro conceito fundamental de Nietzsche, que não abordarei aqui)?  
            O fundamental em toda a questão sobre o eterno retorno não é a possibilidade material de se viver novamente num futuro remoto. O importante é o "peso" quase insuportável, que isto dá às pequenas decisões tomadas no dia-a-dia. A "fantasia" de viver para sempre a mesma vida é um exercício que torna presente a urgência do cotidiano, afinal, é nele que existimos.

2 comentários:

  1. Um texto fantàstico!!! muito bom!!
    compreendendo o eterno retorno do mesmo e as teorias da fisica acho que consegui me aproximar um pouco mais dos gregos e da sua ideia de eternidade,ou seja, da ideia de que nada tem um fim ou um começo. Sim, sim, muito bom!!

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  2. Me senti atraida a reler o texto e outra vez comenta-lo. Acostumamos com a ideia de que o universo è algo infinito e, por isso, estranhamente soa como loucura essa ideia dele ser finito e se assim for a possibilidade de repetiçao das inimaginàveis combinaçoes. Falando disso voce pergunta sobre o exato significado dessa incessante repetição e o curioso è o fato de que o significado do que se repete pode sempre ser diferente porque somos nòs quem o criamos.
    A tua percepçao de que o que aparentemente é dualidade na verdade nao passa faces da mesma realidade é tao interessante quanto aquela sobre o amor (eros) e o òdio (hybrys). Nao sao duas coisas distintas e contràrias, mas se completam, andam juntas, fazem parte de uma mesma realidade.

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