Do presente voltar ao passado, não para alterar nada
mas apenas para perceber a evolução do si mesmo.
E, foi assim, revisitando o passado,
que fiz a descoberta de um texto
(trabalhado no início de um ano letivo)
onde apresento uma compreensão de filosofia
que ainda sustento e que,
agora, compartilho.
Tatiana Palm
Deve haver algum motivo que justifique a presença de
vocês aqui neste momento, em uma aula de filosofia. Para fazê-los compreender o
porquê de estarem aqui, temos que compreender antes a condição, ou o estado, em
que se encontram todos aqueles que ainda não iniciaram o percurso da filosofia
nem o exercício do cuidado de si.
Vocês, que estão aqui, estão à mercê de todos os
ventos, abertos ao mundo exterior, ou seja, são como folhas mortas carregadas
de um lado para o outro pelo vento. Vocês estão abertos ao mundo exterior de
modo tal que, quase sempre, se deixam levar ou governar pelo que lhes vem de
fora (pelo exterior). Nossos desejos, nossas ambições, nosso modo de agir,
nossa maneira de pensar é moldado pelo que nos é exterior. Vocês não somente
são influenciados e moldados pelo mundo exterior como também estão dispersos no
tempo. A maioria de vocês deixa a vida correr e dificilmente dirige a atenção,
o seu querer, em direção a uma meta precisa e bem determinada. Deixa a vida
correr, muda continuamente de opinião, não pensa na velhice, quer várias coisas
ao mesmo tempo. Mas quer com inércia, quer com preguiça e sua vontade muda
constantemente de objetivo.
Esse estado-comum ou lugar-comum em que vocês se encontram
é de onde se deve sair. Porém, ninguém está suficientemente capacitado para
sair sozinho deste estado. É preciso que alguém lhe estenda a mão, é preciso
alguém que o puxe para fora, para, desse modo, sair do estado, da condição, do
modo de vida, do modo de ser no qual se está.
A filosofia é este “alguém” que estende a mão, que
convida vocês a saírem do modo de vida em que se encontram e no qual estão
apegados. Como a filosofia faz isso? Convidando-os a cuidarem de si mesmos, a
se ocuparem de si mesmos ou a preocuparem-se consigo. Ao incitar os outros a se
ocuparem consigo mesmos, ela desempenha o papel do “despertador” (aquilo que
desperta). O despertar é o momento em que os olhos se abrem, em que se sai do
sono. É o princípio de uma agitação, inquietude, de um estranhamento. Por isso,
iniciar o percurso da filosofia é ir na contramão do que faz a maioria, é
voltar o olhar para si mesmo e isso significa que é preciso desviar o olhar das
coisas do mundo, das coisas que nos ocupam, dos outros, da agitação cotidiana.
É preciso desviar-se para virar-se em direção a si. Isso, para muitos, pode
parecer desprezível, sem valor, sem sentido, inútil.
O cuidado de si será, portanto, aquilo do que nos
ocuparemos em nossas aulas de filosofia e aquilo de que vocês incessantemente
devem se ocupar durante toda a vida. Pois bem, muitos de vocês devem estar se
perguntando sobre por que cuidar de si? Ora, porque o nosso si mesmo é esquecido
na nossa vida cotidiana. Vocês se preocupam em adquirir dinheiro,
reconhecimento (admiração), em ter um bom emprego e sucesso; se ocupam com o
corpo (aparência), com a reputação, com o amor, com tantas coisas, mas não se
ocupam e preocupam consigo mesmos. O cuidar de si mesmo não é o cuidado do
corpo, nem tampouco o cuidado dos bens e também não é o cuidado amoroso.
Deves cuidar
de ti mesmo. Mas o que é este si mesmo com que devemos nos ocupar? O
que é cuidar ou ocupar, ou preocupar-se? Sabemos o que é ocupar-se com nossos
sapatos, nossa casa, nossa saúde, com os estudos, mas corre-se um grande risco
de não saber bem o que fazer quando se quer ocupar-se consigo mesmo. Pois bem,
o si mesmo é o eu que, por sua vez, deve ser compreendido como o “sujeito de”:
ações, comportamentos, relações, atitudes, etc. Assim ocupar-se ou cuidar de si
mesmo não é outra coisa senão ocupar-se do eu, do “sujeito de”. Já o cuidar (o
ocupar-se, o preocupar-se) de si deve ser entendido como um conjunto de
práticas (atitudes), que devem ter efeito sobre o modo de ser de vocês, ou,
melhor dizendo, no modo como vocês vivem (ou existem) no mundo.
O cuidado de si mesmo implica em um conjunto de
práticas e exercícios que visam a transformação do sujeito. Dentre essas
práticas sobressaem-se o conhecimento de
si, tanto objetivo quanto subjetivo, ou seja, o conhecimento
filosófico-científico sobre o mundo e o próprio ser humano e o
autoconhecimento, incluindo nestes os exames de consciência, os exercícios de
meditação e reflexão e a auto-avaliação diária das ações, vontades,
pensamentos, etc.
Filosofar, então, será, antes de tudo, ter cuidado com
o próprio eu, com o sujeito que cada um de vocês é, e, ter cuidado, significa,
ter conhecimento a respeito de si mesmo. Isso tem por objetivo ou finalidade
não apenas fazer de vocês, que se ocupam de si, pessoas diferentes em relação à
massa, a maioria, mas, principalmente, fazê-los melhorar ou transformar o
próprio modo de ser (comportamento, atitudes, escolhas) para, desse modo, poder
melhorar ou transformar o mundo em que vivemos.
O cuidado de si torna-se assim uma atividade de
questionamento, de reflexão e de crítica, em primeiro lugar, em relação a si
mesmo, em segundo lugar, em relação ao mundo. Mas, o papel do cuidado de si não
será somente crítico senão também formador, ou seja, existe uma formação ligada
ao cuidado de si, mas não uma formação em função de um fim profissional
determinado, mas sim uma formação corretiva. Isso se resume na idéia de que o
objetivo da prática do cuidado de si em sala de aula tem a função de corrigir
(nosso modo de ser) mais do que instruir (transmitir um saber).
A questão final que se coloca agora é: quando praticar
o cuidado de si? O tempo todo estamos envolvidos demais com as coisas do nosso
mundo (trabalho, cursos, esportes, festas, estudos, internet) e parece que elas
nos consumem a todo tempo. As vezes até parece nos faltar tempo para fazer tudo
o que achamos que devemos fazer. E quando sobra tempo, a maioria costuma não
saber como aproveitá-lo, ficando diante da TV ou na internet sem nenhum
propósito, dormindo, etc. Este tempo livre que se costuma desperdiçar com
coisas vãs, era compreendido pelos antigos como o ócio, ou seja, um momento
precioso e condição sem a qual o cuidado de si mesmo não poderia ocorrer.
Como atualmente o ócio, isto é, o “tempo livre”
necessário para o cuidado de si é considerado um tempo morto, como é difícil
para vocês em seu “tempo livre” ocuparem-se consigo mesmos então, isto será
feito na aula de filosofia. A aula de filosofia será portanto dedicada ao ócio,
ou seja, o momento de refletir sobre nós mesmos, analisar nossa vida diária,
nossos comportamentos e atitudes, além de conhecer (compreender) melhor a nós
mesmo.
Todos vocês que participarão o ócio nas aulas de
filosofia, em princípio, são capazes de praticar o exercício do cuidado de si,
mas, também é fato que, no geral, poucos são, efetivamente, capazes de
ocupar-se consigo. Falta de coragem, falta de força, falta de resistência –
incapacidade de aperceber-se da importância desta tarefa, incapacidade de
executá-la: este, com efeito, é o destino da maioria. A necessidade de praticar
o cuidado de si poderá ser repetida em toda parte e para todos. A escuta, a
efetivação desta prática, de todo modo, será fraca. E é justamente porque a
escuta é fraca e porque, seja por que motivo for, poucos saberão escutá-la, que
a necessidade da prática do cuidado de si deve ser repetida por toda parte e a
todo momento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário