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terça-feira, 24 de agosto de 2010

Esquizofrenia amém

Esquizofrenia Amém
Luciano Palm


Quando a última árvore tiver caído,
Quando o último rio tiver secado,
Quando o último peixe for pescado,
Vocês vão entender que o dinheiro não se come.
Seatle (líder indígena norte americano, lema do Greenpeace)


     Pensar o homem ocidental do princípio do século XXI e sua condição no mundo implica em pensar a experiência mais radical e fundamental que marca esta condição, isto é, a desubstancialização (processo de desencantamento do mundo). A queda anunciada dos grandes valores que sustentavam e atribuíam sentido ao mundo, condenaram o homem ao exílio de habitar num mundo desencantado, vazio e sem sentido (um mundo racionalizado e objetificado). A desubstancialização pode ser entendida como o esvaziamento de sentido (significado, importância) de todas as esferas da vida humana, incluindo a própria existência. A busca frenética por prazeres fugazes, ao contrário de uma atitude hedonista, se apresenta como a declaração derrotada de quem parece querer aproveitar desesperadamente os últimos suspiros de vida que ainda lhes restam. Mas deixemos o tom apocalíptico de lado, que com este já nos saturam os sacerdotes das mais variadas seitas e religiões e busquemos a genealogia desta experiência fundamental do homem ocidental.
     Ao pensarmos a questão da desubstancialização do mundo enquanto esvaziamento de sentido, logo vemos o absurdo que tal problema trás. Nunca o mundo fora tão pleno de sentido, todos temos acesso a informação sobre os mais variados temas, recebemos notícias em tempo real de qualquer parte do mundo, dicionários, revistas, livros, tudo está ao alcance de nossas mãos. Sem falar nos incansáveis e rigorosos estudos, tanto de fenomenologia hermenêutica, quanto de filosofia analítica, preocupados em determinar e esclarecer qualquer problema de linguagem que impeça a correta compreensão dos enunciados, ou o sentido preciso daquilo que está vinculado aos enunciados. Por que então, em um mundo como o nosso haveria ainda o problema como o da desubstancialização? Exatamente porque não é do sentido gramatical ou lingüístico que se trata, quando falamos do esvaziamento de sentido causado pela desubstancialização do mundo estamos falando da busca humana por um propósito, por um motivo que supere qualquer compreensão lógica.
     A desubstancialização é uma experiência radical frente a qual o homem vê-se intimado a dar uma resposta. Em O mito de sísifo, Camus coloca a questão do suicídio como a primeira questão filosófica a ser respondida pelo homem. Afinal, o que faz com que a vida valha a pena ser vivida? Contudo, em um mundo desencantado até a morte perde seu sentido.


     A crença em algo permanente e imutável foi até agora a grande fé pela qual se pautou o mundo ocidental. Deus, a verdade, o progresso, o sujeito, são vários os nomes a partir dos quais se construiu e repaginou a substancialização do mundo. Contudo, há sempre algo em comum em todas essas versões: o fato de se atribuir ao mundo um caráter imutável, fixo e eterno, garantido por algo transcendente colocado para além das coisas. Neste sentido, Nietzsche freqüentemente diagnostica em sua filosofia uma grave doença: o nihilismo. O niilismo é o modo como o ocidente pensou e construiu até agora a sua vida. Sua lógica consiste em negar este mundo em que existimos em nome de outra coisa (um reino moral, como em Kant, ou um mundo inteligível, como em Platão, ou ainda, o céu ou paraíso cristãos que, para Nietzsche, não passam de “platonismo para o povo”).
     Para Nietzsche, não se trata mais de negar esta existência ou esta vida em nome de um “nada” que está além mas, ao contrário, de afirmar a existência e a vida tais como se apresentam ao homem, sem apelar a nenhuma outra instância avaliadora que as explique e fundamente. Tal posição implica em aceitar o caráter perspectivo da existência no mesmo movimento em que se admite que a vida caracteriza-se por uma luta por mais poder. Para o filósofo, a vida é vontade de poder: das relações de poder que a constituem resultam valores que, em seu confronto, estabelecem as diversas perspectivas. A vida é, para o filósofo, o único parâmetro a guiar o homem, de modo que, as perspectivas que incrementam e favorecem a busca inerente por mais poder, são as que devem ser escolhidas por um homem sadio.
     Mas, e o que dizer quando inclusive a vida (não a vida individual, mas de toda a espécie) se vê agora ameaçada por seu modus vivendi? No momento em que a última grande crença do homem o leva finalmente a beira do abismo, quando toda a evolução tecnológica e científica esgotaram o planeta de tal modo que as próximas gerações se vêem comprometidas? O problema do aquecimento global, das alterações climáticas e as incertezas em relação ao futuro, fazem com que a humanidade busque aproveitar sua vida de forma desesperada, imediatista e fugaz.
     Em um mundo descartável, siliconado, turbinado, cibernético, eclético, fútil e vazio, tudo parece ser possível e permitido. Tudo? Bem, este tudo não corresponde exatamente a totalidade das possibilidades de ação e de vida, mas tudo que possa ser convertido em lucro econômico e que se enquadre nas leis do mercado. No mundo contemporâneo o ser humano, a vida e o mundo são implacavelmente submetidos a nebulosas leis econômicas que impõem a máxima do “ter para ser”. Inclusive as relações interpessoais remontam a mesma máxima, neste sentido, quando se procura identificar alguém, geralmente se ouve coisas do gênero: “Fulano é aquele que mora naquela casa, tem aquele carro, trabalha nisto ou naquilo, etc.” Ou seja, todos dados materiais e externos a própria pessoa. Desse modo, não se diz o que a pessoa é, mas o que ela tem. Enfim, pode-se dizer que hoje uma pessoa vale tanto quanto a quantidade de zeros de sua conta bancária.
     Esta soberania do valor econômico sobre qualquer outra dimensão valorativa já produziu e continua a produzir inúmeras consequências pessoais e sociais. Toda cultura sofre os efeitos da materialização absoluta e economização da vida. Um dos efeitos mais dramáticos de tal processo (causa das mais variadas conseqüências na vida prática) consiste na reificação (coisificação). Primeiramente o mundo e depois o próprio ser humano é transformado em simples coisa (res), cujo valor se calcula por sua utilidade (fundamentalmente sua utilidade econômica).
     Se observarmos a experiência cotidiana, verificaremos que nas sociedades ocidentais contemporâneas existem basicamente dois grandes grupos de pessoas, 1) os tristes e deprimidos e 2) os estressados e ansiosos. O que demonstra um estado de adoecimento das civilizações ocidentais contemporâneas. O filósofo alemão Niestzsche diagnosticou tal adoecimento ainda no final do século XIX, descrevendo-o como nihilismo (do latim Nihil: Nada). O nihilismo seria marcado pela profunda e radical falta de sentido, de perspectiva, pela crise e perda de valor de todas as instituições e valores humanos, produzindo a sensação de que tudo é permitido e válido.
     Num mundo marcado pelo imperativo da utilidade e do lucro é necessário então a construção de uma cortina de ilusões, um véu de maia, que torne a vida diária suportável para a grande maioria da população que se vê praticamente excluída do usufruto da riqueza produzida através de seu trabalho e suor. Desse modo, a ideologia cria uma “realidade” paralela com o compromisso de apagar ou minimizar as diferenças absurdas da realidade prática e imediata. Então permanece sempre em aberto a possibilidade de ganhar na loteria e se tornar um milionário, o acesso a alguns elementos da tecnologia (sobretudo a internet) dá a impressão de pertencimento e conexão ao mundo, além do potencial acesso de todos aos mais variados produtos apresentados sedutoramente pela propaganda, criam ainda uma outra situação, que é uma variação da máxima original, assim, o “ser para ter” acaba por se converter em “parecer ter para ser”. Desse modo, na sociedade do espetáculo e da aparência, não é mais sequer necessário um ter efetivo, bastando apenas externar uma aparência compatível com as exigências do momento (é o que se observa quando alguém compra, por exemplo, uma imitação de um tênis de uma marca famosa, é amigo de alguém rico, ou anda com um bom carro ou roupas mesmo que as esteja devendo no comércio, etc). Este novo imperativo moral das sociedade atuais poderia ser explicado através do ditado romano sobre as esposas dos césares: “A esposa de César não precisa ser virtuosa, basta que ela pareça ser virtuosa”.
     Desse modo, a aparência, a futilidade, o imediatismo do mundo contemporâneo favorecem a corrosão de seus pilares de sustentação, minam suas bases como cupins que corroem as estruturas de uma construção até que definitivamente colocá-la abaixo. O processo do desencantamento do mundo acarretou o descompromisso absoluto com o mundo e com as futuras gerações. Vive-se hoje como se fossemos os últimos habitantes do planeta. E é justamente esta mentalidade que precisa ser transformada para que novamente possa se abrir a possibilidade de um futuro que não represente apenas o fim dos tempos, mas um novo recomeço, sob outros fundamentos, visando o espírito cooperativo, solidário e fraterno entre os homens e não a competição selvagem e o canibalismo parasitário em função do lucro imposto como regra atualmente. Devemos perceber de um vez por todas que não somos donos do planeta, não podemos consumi-lo como parasitas e depois abandonar nossos filhos e netos a própria sorte de viver em um planeta exaurido por nossa ganância.

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