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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A genealogia do caos

A Genealogia do Caos
Luciano Palm

          Em cada esquina há uma nova trama sendo desenrolada, com suas alegrias e suas penas, suas aventuras e desventuras. É estranho ver como, apesar de os tipos humanos serem limitados e se repetirem incessantemente, suas combinações e relações são infinitas. No fim das contas, cada qual é (apesar de si) o resultado das relações que estabeleceu e das experiências que disso resultaram (explícitas ou ocultas, reais ou imaginárias, não importa). Somos todos o resultado de nossas situações relacionais.

          Falo das entre-linhas (as entre-linhas é que falam), falo das reticências (falo nas reticências). Nenhuma teoria é capaz de traduzir integral- e fielmente uma relação e uma experiência, a vida não cabe em um conceito, nem em todos os conceitos ela cabe. O que da experiência se expressa no discurso é apenas uma faísca do incêndio da vivência vivida, uma perspectiva dentre várias possíveis. Cada relação e que cada experiência são únicas e plenas enquanto experiências efetivas. Além do mais, quem disse que tudo precisa ser dito? Há coisas que foram feitas para serem ditas, outras para serem ouvidas, e outras ainda, foram feitas para silenciar... (e apenas desfrutar, sentir a flor da pele).

         Contudo, as relações diretas são sempre engodos, máscaras, disfarces. O que realmente importa permanece no silêncio das entre-linhas. As verdadeiras intenções vagueiam no torvelinho das emoções mais recônditas. A relação eu-outro (eu mesmo) implica sempre em luta, conflito, disputa. Neste combate não declarado (e na maioria das vezes sequer consciente) cada qual usa das “armas” que dispõe. E nesta guerra interminável a vida continua sua dança; é uma corrida sem ponto de chegada em que há sempre vitórias e derrotas, perdas e ganhos. Na batalha da existência não há vencedores absolutos, mas também não há perdedores absolutos. Deste combate todos saem feridos e exibimos nossas cicatrizes como troféus. Pois, as cicatrizes são as marcas, os sinais, os rastros deixados em nós pelo tempo. O dito e o feito são apenas um grão de areia em meio ao deserto do silêncio e do esquecimento.

         Não se trata aqui de discutir obsoletamente a natureza boa ou má do eu e do outro que estabelecem suas relações. Trata-se apenas de uma análise objetiva (até onde isto se possa fazer em tal questão) da relação efetiva entre o eu e o outro. Ou talvez, se trate apenas da descrição de uma observação pessoal sobre esta relação eu-outro, mas que ainda assim merece ser discutida e levada a sério.

          Mas e o que dizer das relações nobres e sinceras de amizade e amor que brotam desta relação eu-outro? Será que não se enquadram ou escapariam desta descrição inicial? Denotariam a parcialidade e a iniqüidade da perspectiva apresentada? Certamente não. Também na amizade e no amor o caráter combativo e conflitivo permanecem como as molas propulsoras fundamentais de toda e qualquer relação. Nestes termos, a situação aprazível, confortável e aconchegante da amizade e do amor são os resultados de um longo processo de “negociação” e compreensão, em que as diferenças e vontades próprias são acomodadas de tal modo a formarem o solo sob o qual o amor e a amizade possam nascer e florescer.

        Relações sinceras se constituem tal qual o tear das moiras, volúveis e imprevisíveis, no desenrolar de um longo e ininterrupto contrato em que tanto o eu, quanto o outro, depositam (como guerreiros nobres em combate) suas armas e máscaras ao chão, em claro sinal de total (ou parcial, dependendo da relação específica) abertura e cumplicidade. Donde resulta que a simpatia é fundamental tanto para o amor quanto para a amizade. Compartilhar um mesmo pathos, sentir junto, estar em conexão, eis a simpatia necessária para a verdadeira amizade e para o verdadeiro amor.

          Somente aqueles que construíram sinceras relações de amizade ou de amor sabem sob quantos cacos e ruínas constituíram-se tais relações, há sempre perdas e ganhos. E, segundo os mandamentos de nossa calculista razão e de nossas inebriantes (e nem sempre razoáveis) emoções, escolhemos sempre aquilo que nos causa menos dor e mais prazer e satisfação. Só abdicamos dos prazeres no anúncio de dores maiores, eis a lei da vontade.

         Vivemos uma época de egos inflados, época de hiper valorização do eu e de “demonização” do outro. Atualmente, os outros, em geral e a priori, são vistos e reconhecidos como empecilhos e obstáculos para nossa plena realização.
          Contudo (eis a ilação), toda possível realização só se dá efetivamente com, e até para os outros. Não há sequer a constituição do eu, senão através da relação com o outro. Contudo, não bastasse a natureza essencialmente conflituosa de tal relação, ela se vê radicalmente potencializada pelo atual modus vivendi das sociedades ocidentais contemporâneas, fundamentado na competitividade selvagem, na produção e consumo desenfreados e na ânsia pelo acúmulo de bens e riquezas. A ponto (e sob o risco) de a humanidade, empanturrada com suas riquezas e comodidades, poder acabar com a possibilidade de vida de toda espécie.

         No entanto, o que realmente importa e merece ser posto em evidência nesta relação eu-outro, é o fato de que é sempre a situação relacional que constitui os sujeitos. É somente na relação que se constitui a realidade efetiva tanto do eu, quanto do outro. Isto é, a relação é a única positividade, conflituosa por natureza é verdade, mas a única positividade, da qual tanto o eu quanto o outro são apenas espectros (a negatividade da relação).

         Desse modo, as expectativas de reconhecimento, realização, bem-estar, em uma palavra, as expectativas de felicidade dependem estreitamente das relações estabelecidas. As decepções e frustrações estão igualmente ancoradas nestas relações. Há sempre um jogo de intenções e expectativas envolvendo a relação eu-outro, nesse sentido, quando tais intenções e expectativas se efetivam como resultado da relação, alcança-se a satisfação e encontramo-nos em estado de felicidade, caso contrário, a frustração e o desprazer são invitáveis.
         A plena felicidade, assim como, o pleno infortúnio, são impossíveis ao ser humano. É verdade que podemos mais facilmente alcançar (ou chegarmos próximo) do pleno infortúnio, ao invés da plena felicidade. Porém, em geral, oscila-se na existência, tal qual em uma montanha russa, mesclando constantemente estados de felicidade e de infelicidade. Além disso, é de acordo com nossas expectativas de plena felicidade e satisfação que construímos nossas mais variadas imagens de céu e paraíso e, ao contrário, é segundo nossas expectativas e temores do pleno infortúnio que construímos nossas imagens do inferno e do mal.

         Contudo, entre sabores e dês-sabores vai se vivendo até o derradeiro suspiro (involuntário ou voluntário). Pois, para quem vive sob infortúnios exacerbados, o suicídio sempre permanece como uma alternativa possível. E que ninguém ouse se colocar na posição de juiz no que diz respeito ao sofrimento alheio. A maneira como experienciamos nossas vivências é estritamente singular e única. Única, não apenas pelo fato de que cada pessoa reaja e experiencie cada vivência de modo singular, senão que uma mesma pessoa poderá reagir de modo distinto a uma experiência em diferentes momentos de sua vida, dependendo sempre de sua condição emocional e das experiências daquele momento específico de sua vida.

          Harmonia e equilíbrio são conceitos fundamentais para a Antiguidade. Tais conceitos podem ser resgatados ao se tratar da suportabilidade dos reveses da existência humana. Contudo, se quisermos o auxílio de tais conceitos, teremos que re-significá-los, transvalorá-los, redimensioná-los, para que possam ser aplicados ao contexto atual.

         Na Antiguidade, harmonia e equilíbrio referiam-se ao kósmos (externo e interno, porém maior ênfase era dada a exterioridade), isto é, a relação entre o Todo e as Partes. O kósmos constituía uma ordem plena, em relação a qual todas as partes que o constituíam encontravam o seu devido lugar, seu significado e sentido. Porém, atualmente o kósmos, tornou-se novamente kaos, perdendo seu sentido unitário de totalidade. Com a queda dos grandes valores e ideais, o que restou foi uma densa e complicada colcha de retalhos carente de sentido. Desse modo, se o kósmos se tornou kaos em sua exterioridade, é através da interioridade que deve-se procurar restabelecer uma ordem harmônica e equilibrada para a existência humana.

OBS.: Continuarei outra hora.


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