A farsa
ou
A arquitetura de si
ou
A arquitetura de si
Luciano Palm
O que faz de nós o que somos é um mistério que dificilmente conseguiremos desvendar com precisão. Acredito inclusive que apenas duas situações tornam tal tarefa digna de ser levada à cabo, quais sejam, ou para acomodar algum desconforto psíquico ou para melhorar a sociabilidade através do autoconhecimento.
A tarefa do autoconhecimento, que já remonta a Antiguidade grega através do preceito délfico do "conhece-te a ti mesmo", que posteriormente na voz de Sócrates tornara-se um dos baluartes da filosofia, é uma tarefa que exige preparo e astúcia, jamais deve configurar numa brincadeira gratuita, pois, não há nada de ingênuo e inocente em se "brincar" com as estruturas psíquicas, valorativas, emocionais e intelectuais de um sujeito.
Para definir inicialmente o que seja a farsa, parto do princípio de que podemos analogicamente comparar a sociedade e as relações sociais estabelecidas em seu interior ao teatro. Desse modo, o jogo social se desdobra tal qual uma encenação teatral, com um cenário, um contexto significativo, atores e papéis determinados (ou que se determinam a partir das situações dadas e das relações que vão se estabelecendo durante a cena). A farsa, neste sentido, não consiste em um definição negativa ou pejorativa, ela é simplesmente a expressão do caráter (do tipo, do perfil...) das relações que se desdobram no palco social. Pois, no jogo que se estabelece entre os atores no palco social, tanto o eu quanto o outro, são negados, ou seja, na relação com o(s) outro(s) jamais conseguirei fazer valer integralmente minhas intenções e vontades sobre as dele(s), por mais sádico, no sentido sartriano que eu seja; assim também ninguém se anulará completa- e absolutamente em função do outro, por mais masoquista que possa ser.
Assim, no palco social todos são o resultado das situações relacionais estabelecidas em ato, o eu e o outro que somos, são redefinidos a todo momento pelas relações estabelecidas e pelas situações dadas. Desse modo, como não é nem o eu, nem o outro que se apresentam integralmente na relação, esta configura-se como farsa (negação e redefinição do eu e do outro), assim também todo o palco social e o jogo nele jogado podem ser definidos como farsa, pois, dependem e se fundamentam nesta negação subjetiva e na redefinição dos papéis a serem desenrolados em cena. A farsa é então o fundamento da persona, isto é, da pessoa que se é ou do personagem social que se desempenha, assim como da personalidade que se construiu.
O jogo
Após ter definido o teastro social enquanto farsa, podemos também dizer que na farsa há constantemente um jogo ininterrupto sendo jogado. Jogo este em que só é possível se alcançar vitórias e sucessos parciais e momentâneos, ocorrendo o mesmo com as derrotas e fracassos. O jogo é a energia pulsante da sociedade, é a fonte vital do espetáculo teatral, é um jogo gratuito, mas vital. Desse modo, não há nenhum sentido intrínseco no jogo da vida, o único sentido é (ou são) aquele(s) que nós atribuímos a cada situação e vivência experienciadas.
Para ser um bom jogador é necessário astúcia, raciocínio rápido e, é claro, todas as qualidades do bom ator. O jogo se dá através da encenação, é no palco que ele se dá, de modo que é necessário ter sempre em vista o papel dos outros, que são tão importantes quanto o meu. Como, em geral, apenas pouquíssimas pessoas se apercebem da farsa e consequentemente não tem consciência do jogo, deixando-se levar ao sabor do vento; cabe àqueles que tomaram tal consciência a tarefa de conduzir o jogo, ditando o seu rumo e ritmo. E aqui não me refiro a nenhuma habilidade maniqueísta ou maquiavélica, embora concorde que a partir desta consciência possa se desfrutar de alguns benefícios.
Contudo, se por um lado, a maioria das pessoas é desprovida de um bom preparo intelectual e, por isso, possam ser facilmente enganadas em questões teóricas. O mesmo não ocorre no que se refere à vida prática, nesta todos (do mais esclarecido ao mais ignorante) possuem um juízo (um senso) prático que logo torna possível perceber as intenções que se escondem por detrás das palavras e dos atos. E muito dificilmente este juízo prático nos abandona (a não ser nos casos em que estejamos cegados por nossas paixões).
De modo que, o uso escancarado para benefício próprio com descaso e inclusive prejuízo para com os outros é facilmente identificado como mal-caratismo e deslealdade (e isto não sem razão). Evidentemente é sinal de um mal-caráter usar os outros apenas como um instrumento (como um meio) para a satisfação dos próprios interesses e desejos. Uma pessoa deve ser reconhecida, respeitada e considerada pela sua dignidade de ser humano, ou seja, alguém que é existencial-, jurídica-, política-, psicológica- e intelectualmente igual a mim, não podendo jamais ser usada como uma simples coisa para meu usufruto e deleite, para a mera satisfação de meu bel-prazer.
O jogo honesto e justo se dá quando o desenrolar dele objetiva o crescimento e a satisfação de todos os envolvidos (ou que ao menos assim o aparente), com maior benefício àqueles que tiverem raciocínio mais rápido, forem mais perspicazes e astutos na condução do mesmo. Neste sentido, estabelecer e manter as relações sociais mais acertadas e inclusive estreitar as mesmas quando for oportuno será um importante instrumento e um meio eficiente na realização dos objetivos almejados. Saber quando e como aparecer em cena, como desempenhar seu papel (e inclusive qual papel desempenhar na situação dada) sempre foram e continuam sendo fundamentais para o enredo do espetáculo no teatro da vida. Além disso, outra questão fundamental é o uso da língua, um vocabulário adequado e bem calibrado poderá inicialmente evitar conflitos e, por outro lado, poderá mobilizar forças a seu favor quando necessário. Pois, em geral, muitos dos conflitos no teatro da vida são gerados não por aquilo que é dito, mas pelo modo como é dito aquilo que se quer dizer. Então, em primeiro lugar, calibre bem sua língua, em segundo, saiba que em muitas ocasiões o silêncio vale mais do que mil palavras.
Os papéis
Os papéis e os personagens já estão predefinidos na farsa, ao menos como tipos ou modelos. A própria sociedade define os personagens e seus perfis de acordo com a necessidade para o espetáculo a ser encenado.
Quanto aos papéis e os personagens, a maioria das pessoas se fixa e desempenha um número pequeno e fixo de personagens (p. ex., o pai, o profissional e o marido). Tendo assim, pouca mobilidade em cena, restringindo o seu campo de ação social. Quanto maior for o número de papéis e personagens desempenhados, tanto maior será o âmbito do campo de ação e a mobilidade do ator social. Porém, não podemos confundir a habilidade no desempenho de vários papéis sociais com os "camaleões" sociais, isto é, com aqueles sujeitos que, sem nenhuma personalidade, se comportam e agem segundo e de acordo com quem estiver a sua volta.
A habilidade cênica exige treino e preparo para ser desempenhada com competência. Todo ator deve também ter qualquer coisa de psicólogo, pois, terá que captar na aura dos outros (nas suas intenções, vaidades e sutilezas) suas possibilidades de ação. Grande parte do sucesso cênico, se é que podemos denominar dessa maneira, está nesta competência psicológica do ator. Sucesso é um termo viciado e carregado de sentido, então, substituiremo-lo por mérito, que julgo mais adequado. Mas que mérito cênico seria possível ao ator social?
O jogo de cena (o espetáculo) no palco social consiste originalmente num fluxo constante (e a princípio caótico) de energias vitais. Neste sentido, o mérito dos atores sociais conscientes de sua condição, situação e função cênica está em poder canalizar estas energias para algum empreendimento benéfico para todo o espetáculo, canalizando este fluxo de energias para um conjunto de ações edificantes e criativas.
É importante lembrar que, assim como a arte é livre por princípio, não é compromisso ou missão dos atores sociais conscientes da farsa a melhoria ou a correção da sociedade. Contudo, minha inocência e minhas sinceras esperanças consideram mais razoável que assim o seja. Mesmo após Adorno e Horkheimer terem nos mostrado que esclarecimento e civilização nem sempre andem juntos e que, pelo contrário, em nossos tempos o esclarecimento esteja aparentemente conduzindo a humanidade para uma nova barbárie. Ainda assim, continuarei trabalhando, sonhando e colocando minhas fichas de uma vida melhor na mesa do futuro, nem que está seja apenas uma estratégia para suportar e sobreviver as penas do presente.
Consciencia na (da) farsa
E se num belo dia, todos acordassem e decidissem parar com este joguinho de imagens e começassem a estabelecer apenas relações diretas, sinceras e francas? É verdade que se apenas alguns fossem sinceros, estes estariam automaticamente condenados ao ostracismo, porque em geral, as pessoas não lidam lá muito bem com a verdade.
Ouvem apenas o que querem ouvir e adoram serem elogiadas e "paparicadas". Em geral, se quiseres o apoio ou a aprovação de alguém, elogie-a, infle seu ego e conquiste-a por sua vaidade, pois, não há nada que deixe as pessoas em geral, e os "bichos pequenos"em especial, mais eufóricas e dóceis do que uma boa dose de elogios baratos e fáceis.
Para o rebanho vale a frase de Arnaldo Antunes, "...interessante que formiga vê tudo gigante..." (música do album ie ie ie); são míopes, distorcem tudo o que vêem, barro se transforma em chocolate, pedra em ouro, ruído e rabisco em obra-prima e assim por diante. Não há como ser sincero e profundo com quem não tem nada além da carcaça para demonstrar. Contudo, se pensarmos num grupo hipotético, em que todos tivessem consciência da farsa e como gente grande decidissem pautar suas relações unicamente na sinceridade e na franqueza, como será que seriam tais relações? Será que seriam possíveis ou simplesmente insustentáveis? Será que gerariam uma condição de paz e estabilidade ou uma condição de conflito e discórdia permanente? Seriam tais pessoas mais saudáveis do que na farsa ou completamente neuróticas e insuportáveis?
Em verdade, considero simplesmente impossível responder as questões acima levantadas de modo meramente hipotético e teórico. Somente as condições objetivas e as relações efetivas podem responder a tais indagações. Contudo, seguindo minhas conjeturas gratuitas e minhas suposições fortuitas (risos), acredito que seria sim possível uma tal realidade se alguns pressupostos fossem reunidos. Em primeiro lugar, não há nada mais complicado e imprevisível do que um ser humano, nossas idéias, vontades, desejos e objetivos são tão voláteis quanto a direção dos ventos. Nenhum fio de Ariadne tornaria possível desvendar os caminhos de tal labirinto.
Schopenhauer, sob o eco da Crítica da Razão Pura de Kant, disse que o mundo é representação, sendo mais preciso, vontade e representação na definição schopenhauriana. Evidentemente tanto para Kant, quanto para Schopenhauer tal representação se dá sob condições objetivas. Contudo, a visão e compreensão de mundo que resulta destas representações são inevitavelmente influenciadas e determinadas pelas experiências e vivências subjetivas, tais condições fazem com que diante das mesmas representações se erijam visões e compreensões de mundo diferenciadas e distintas. Por si só, isto não configura um complicador, pois, as diferenças banem a monotonia, é verdade que podem eventualemente também criar conflitos, mas quem quiser se ver livre de conflitos, sejamos sinceros, terá que abandonar e se livrar de sua humana condição, porque para esta, o conflito é a regra e inclusive um de seus atrativos, o colorido especial para a tela monocolor.
A questão fundamental neste sentido é saber se todos estarão aptos a suportar tanta verdade e se é realmente salutar metralharmos uns aos outros com tudo aquilo que pensamos e queremos, já que o que pensamos e queremos varia tanto de momento para momento, de instante para instante, chegando a situações em que sequer nós mesmos conseguimos determinar exatamente quais são nossos juízos e vontades? Mas acredito que, se esta for a proposta, a intenção sincera e comum de um determinado grupo, então, em primeiro lugar, acredito que a ironia e o senso de humor devam ser o fundamento para tais relações (de toda e qualquer relação inclusive), saber que devemos dar apenas a importância e a atenção que é cabível a cada situação, enunciado e juízo (devemos saber que a transformação e a mudança são próprias de todo e qualquer ser humano), e, em segundo lugar, a capacidade de perdoar e relevar, devem andar de mãos dadas com o grau de sinceridade pretendida em qualquer relação. Talvez um dia encontremos companheiros e companheiras dispostos a esta nobre empreitada, talvez um dia aprendamos que não devemos ensinar os nossos filhos a viver sob as sombras de nossas verdades e que é mais nobre ensinarmo-los a viver sem as nossas mentiras.
A questão fundamental neste sentido é saber se todos estarão aptos a suportar tanta verdade e se é realmente salutar metralharmos uns aos outros com tudo aquilo que pensamos e queremos, já que o que pensamos e queremos varia tanto de momento para momento, de instante para instante, chegando a situações em que sequer nós mesmos conseguimos determinar exatamente quais são nossos juízos e vontades? Mas acredito que, se esta for a proposta, a intenção sincera e comum de um determinado grupo, então, em primeiro lugar, acredito que a ironia e o senso de humor devam ser o fundamento para tais relações (de toda e qualquer relação inclusive), saber que devemos dar apenas a importância e a atenção que é cabível a cada situação, enunciado e juízo (devemos saber que a transformação e a mudança são próprias de todo e qualquer ser humano), e, em segundo lugar, a capacidade de perdoar e relevar, devem andar de mãos dadas com o grau de sinceridade pretendida em qualquer relação. Talvez um dia encontremos companheiros e companheiras dispostos a esta nobre empreitada, talvez um dia aprendamos que não devemos ensinar os nossos filhos a viver sob as sombras de nossas verdades e que é mais nobre ensinarmo-los a viver sem as nossas mentiras.
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