As formas do Ser
Luciano Palm
Em uma dessas divagações cotidianas, dessas que quando você vê, já se pega pensando em um assunto inesperado; me peguei pensando sobre habitação, modos de vida, habitus (costumes, hábitos e comportamentos social- e culturalmente constituídos), visões e compreensões de mundo. Um assunto puxando o outro, efeito cascata, reação em cadeia. Tais assuntos já há tempos fazem parte de meu horizonte de preocupações e reflexões, mas foram significativamente instigados pelas experiências e aprendizados obtidos no Aldeia da Paz (espaço temático do FSM para a discussão de alternativas sustentáveis e outros modos de vida).
Nesse sentido, conta-se que logo no pórtico de entrada da Academia de Platão lia-se assim: "NÃO ENTRE, QUEM NÃO SOUBER GEOMETRIA". Por que será que a Geometria nutria tamanho prestígio na Antiguidade? Tal prestígio não se resumia a filosofia platônica, mas remonta a tradições muito mais antigas, como a pitagórica, a egípcia e de outros povos do oriente, além de evidências de sua presença nas tradições de diversos povos indígenas da América.
No fundamento de todas estas cosmovisões está a ideia de que o cosmos (o universo, a realidade de tudo o que existe), tem em si uma ordem e uma harmonia perfeitas, simetricamente relacionada, conectada e constituída por três formas básicas: o quadrado, o triângulo e o círculo.
Cada uma destas formas se remete a uma ordem de ser distinta, por exemplo: o quadrado é a representação da matéria, do mundo material e de nossa estreita ligação com ele (observem que na imagem a figura humana está circunscrita e limitada pelo quadrado em todas as suas extremidades), neste sentido, o quadrado desvela também a ordem do TER; o triângulo, por sua vez, com suas três pontas, com uma de suas extremidades voltada para cima (representando o potencial racional e espiritual humano, podendo ser interpretado também como o canal de ligação do ser humano com o divino (lembremos que a representação da trindade cristã por exemplo está fundamentada neste princípio) e a outra voltada para baixo (representando a ligação do ser humano com a terra, com sua animalidade e com suas limitações), assim, o triângulo desvela a ordem do SABER; e finalmente o círculo, é a representação da máxima perfeição, é o fluxo ininterrupto das energias cósmicas do qual toda a vida flui, o círculo não tem início nem fim nem nenhum obstáculo que bloqueie o fluxo energético, desse modo, ele desvela a ordem do SER (em maiúsculo), do divino, do sagrado e do universal por definição.
Partindo desta compreensão geométrica da constituição das ordens de ser, é possível observar que a organização dos espaços vitais humanos, de moradia, trabalho, lazer e convívio (públicos ou privados), expressam a visão e compreensão de mundo em que se fundamenta um determinado povo, comunidade ou sociedade. Por exemplo, aqueles que vivem, estudam, trabalham e se divertem no quadrado estão obviamente fundamentados numa visão e compreensão de mundo baseada na posse e na propriedade, ou seja, na ordem do TER. Conformando-se a esta visão de mundo, não descobrindo alternativas, não tendo qualquer estímulo ou não encontrando dispositivos para acessar outras formas geométricas (que representam diferentes níveis de compreensão de mundo, intelectual, espiritual e psicológica), os que vivem no quadrado, poderão enfim e ao cabo, também morrerem no quadrado, empanturrados coisas, embora mergulhados em profunda miséria espiritual, psíquica, social e intelectual.
Além disso, nesta visão de mundo geométrica está pressuposto um ciclo evolutivo, neste, tanto a evolução individual quanto cósmica e universal, está relacionada com o movimento, com a transição e o fluxo entre uma forma e outra; das mais elementar (o quadrado), a mais universal (o círculo), perpassando pelo triângulo (enquanto canal de ligação entre o mundo material e espiritual). A perfeição e a harmonia do cosmos está compreendida na forma eterna e infinita do círculo (em que tudo se encontra em fluxo constante e ininterrupto, em que as energias cósmicas fluem incessantemente sem qualquer perturbação ou obstáculo).
Contudo, inicialmente todos seres humanos nascem conformados a uma constituição física, material, espiritual e de consciência limitada e limitante (o quadrado). Cada canto do quadrado representa os limites de ação, relação, compreensão e experiência. O triângulo, por sua vez, com sua ponta voltada para cima, representa a possibilidade humana de transcender os limites físicos e materiais através da expansão da consciência (intelectual, psicológica e espiritual). Esta transcendência do quadrado para o círculo é a expressão do fluxo evolutivo perfeito, neste momento o ser humano conseguiria incorporar, transferir e introduzir na realidade humana, natural e limitada a perfeição e a harmonia do cosmos. Inclusive, na Antiguidade Clássica, o ideal do Bem comum e de felicidade eram compreendidos a partir da capacidade humana de incorporar a perfeição da ordem natural ao universo humano. Desse modo, torna-se possível uma nova (e também antiga, já que esteve presente na cultura de diversos povos da Antiguidade) compreensão de mundo, fundamentalmente universal e cósmica, mais coletiva e menos individualista, mais solidária e menos egoísta, mais cooperativa e menos competitiva, mais humana e menos artificial.
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