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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As formas do ser

As formas do Ser
Luciano Palm
          Em uma dessas divagações cotidianas, dessas que quando você vê, já se pega pensando em um assunto inesperado; me peguei pensando sobre habitação, modos de vida, habitus (costumes, hábitos e comportamentos social- e culturalmente constituídos), visões e compreensões de mundo. Um assunto puxando o outro, efeito cascata, reação em cadeia. Tais assuntos já há tempos fazem parte de meu horizonte de preocupações e reflexões, mas foram significativamente instigados pelas experiências e aprendizados obtidos no Aldeia da Paz (espaço temático do FSM para a discussão de alternativas sustentáveis e outros modos de vida).
           Nesse sentido, conta-se que logo no pórtico de entrada da Academia de Platão lia-se assim: "NÃO ENTRE, QUEM NÃO SOUBER GEOMETRIA". Por que será que a Geometria nutria tamanho prestígio na Antiguidade? Tal prestígio não se resumia a filosofia platônica, mas remonta a tradições muito mais antigas, como a pitagórica, a egípcia e de outros povos do oriente, além de evidências de sua presença nas tradições de diversos povos indígenas da América.
           No fundamento de todas estas cosmovisões está a ideia de que o cosmos (o universo, a realidade de tudo o que existe), tem em si uma ordem e uma harmonia perfeitas, simetricamente relacionada, conectada e constituída por três formas básicas: o quadrado, o triângulo e o círculo.
Cada uma destas formas se remete a uma ordem de ser distinta, por exemplo: o quadrado é a representação da matéria, do mundo material e de nossa estreita ligação com ele (observem que na imagem a figura humana está circunscrita e limitada pelo quadrado em todas as suas extremidades), neste sentido, o quadrado desvela também a ordem do TER; o triângulo, por sua vez, com suas três pontas, com uma de suas extremidades voltada para cima (representando o potencial racional e espiritual humano, podendo ser interpretado também como o canal de ligação do ser humano com o divino (lembremos que a representação da trindade cristã por exemplo está fundamentada neste princípio) e a outra  voltada para baixo (representando a ligação do ser humano com a terra, com sua animalidade e com suas limitações), assim, o triângulo desvela a ordem do SABER; e finalmente o círculo, é a representação da máxima perfeição, é o fluxo ininterrupto das energias cósmicas do qual toda a vida flui, o círculo não tem início nem fim nem nenhum obstáculo que bloqueie o fluxo energético, desse modo, ele desvela a ordem do SER (em maiúsculo), do divino, do sagrado e do universal por definição.
            Partindo desta compreensão geométrica da constituição das ordens de ser, é possível observar que a organização dos espaços vitais humanos, de moradia, trabalho, lazer e convívio (públicos ou privados), expressam a visão e compreensão de mundo em que se fundamenta um determinado povo, comunidade ou sociedade. Por exemplo, aqueles que vivem, estudam, trabalham e se divertem no quadrado estão obviamente fundamentados numa visão e compreensão de mundo baseada na posse e na propriedade, ou seja, na ordem do TER. Conformando-se a esta visão de mundo, não descobrindo alternativas, não tendo qualquer estímulo ou não encontrando dispositivos para acessar outras formas geométricas (que representam diferentes níveis de compreensão de mundo, intelectual, espiritual e psicológica), os que vivem no quadrado, poderão enfim e ao cabo, também morrerem no quadrado, empanturrados coisas, embora mergulhados em profunda miséria espiritual, psíquica, social e intelectual.
           Além disso, nesta visão de mundo geométrica está pressuposto um ciclo evolutivo, neste, tanto a evolução individual quanto cósmica e universal, está relacionada com o movimento, com a transição e o fluxo entre uma forma e outra; das mais elementar (o quadrado), a mais universal (o círculo), perpassando pelo triângulo (enquanto canal de ligação entre o mundo material e espiritual). A perfeição e a harmonia do cosmos está compreendida na forma eterna e infinita do círculo (em que tudo se encontra em fluxo constante e ininterrupto, em que as energias cósmicas fluem incessantemente sem qualquer perturbação ou obstáculo).
             Contudo, inicialmente todos seres humanos nascem conformados a uma constituição física, material, espiritual e de consciência limitada e limitante (o quadrado). Cada canto do quadrado representa os limites de ação, relação, compreensão e experiência. O triângulo, por sua vez, com sua ponta voltada para cima, representa a possibilidade humana de transcender os limites físicos e materiais através da expansão da consciência (intelectual, psicológica e espiritual). Esta transcendência do quadrado para o círculo é a expressão do fluxo evolutivo perfeito, neste momento o ser humano conseguiria incorporar, transferir e introduzir na realidade humana, natural e limitada a perfeição e a harmonia do cosmos. Inclusive, na Antiguidade Clássica, o ideal do Bem comum e de felicidade eram compreendidos a partir da capacidade humana de incorporar a perfeição da ordem natural ao universo humano. Desse modo, torna-se possível uma nova (e também antiga, já que esteve presente na cultura de diversos povos da Antiguidade) compreensão de mundo, fundamentalmente universal e cósmica, mais coletiva e menos individualista, mais solidária e menos egoísta, mais cooperativa e menos competitiva, mais humana e menos artificial.


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