A grande farsa
Luciano Palm
Dia após dia, sol após sol, esforçamo-nos para viver uma
vida vã e sem sentido. O único sentido socialmente aceito é o lucro. E nesta
lógica, aquilo que não se converta em lucro, o que não tiver um valor de troca,
simplesmente carece de qualquer valor na sociedade capitalista. A base
fundamental de nossa sociedade consiste na exploração do homem pelo homem; a
injustiça, a desigualdade e a violência são resultados lógicos (e parte
integral) deste sistema.
Além de nossa sociedade fundamentar-se na exploração e
gerar a injustiça, a desigualdade e a violência como seus produtos, neste
contexto, também o ser humano tem sua humanidade depreciada. Vivemos em um
universo de coisas, em nossa sociedade as coisas tem mais valor do que o
próprio ser humano, se mata e se morre por coisas, mas é-se completamente
indiferente às mazelas sofridas pelas pessoas (inclusive as mais próximas).
Também elas (nós), as pessoas (o impessoal, o “a gente”, o todos e o ninguém),
tem apenas um valor de uso e não um valor em si mesmas (o que
lhes garantiria uma dignidade propriamente humana). A desumanização parece ser
o refluxo da evolução técnica e tecnológica, ampliamos os dispositivos técnicos
de dominação e manipulação da natureza, enquanto exaurimos ao máximo as
relações humanas, restringindo-as, quase que exclusivamente, a relações de
interesse e de utilidade (em que os outros são vistos como simples
meios/instrumentos para a realização de fins egoístas).
Nesta sociedade, todas as dimensões humanas (intelectuais,
psicológicas, emocionais, artísticas, espirituais) são diminuídas e
empobrecidas a fim de serem aliciadas pelo mercado. A deturpação dos valores é
geral. Cultura e educação passam a significar instrumentalização técnica para o
trabalho ou entretenimento. Tudo parece ter perdido autenticidade, nada é
verdadeiro na grande farsa, no reino do parecer-ser a massificação, a cópia, a
imitação servil, a reprodução alienante, a superficialidade, a mediocridade
configuraram-se em atitudes fundamentais no comércio social. A regra universal
em nosso atual paradigma social e civilizatório parece dizer: Tudo o que é
grande e nobre deve ser amesquinhado e rebaixado, até perder todo o seu valor e
resumir-se meramente a um preço, isto é, a um simples valor de troca.
O modelo social atual, promove uma sociabilidade que
podemos caracterizar de agonística, pois, há uma tensão constante nas relações
sociais, o outro ou os outros são considerados, na maioria das
vezes, como adversários ou inimigos. Em nossa sociedade, inteligência passou a
ser sinônimo de mau-caratismo, pois, “inteligente” é aquele que é mais esperto
do que os outros, é quem consegue levar vantagem sobre os outros. Bondade,
passou a ser sinônimo de servilismo e submissão passiva. Solidariedade, passou
a ser sinônimo de ingenuidade ou hipocrisia. Amor, passou a ser sinônimo de
sensualidade vulgar. Como se vê, tudo parece estar fora do lugar, nossa visão
de mundo está turva ou míope, parece não haver mais ideais comuns, tudo o que
restou foi um solipsismo melancólico e solitário (além de uma prateleira cheia
de medicamentos para aplacar a dor e o vazio). Nossa sociedade agonística,
competitiva, predatória, narcisística, consumista e egoísta, dá seus últimos
suspiros e entre seus dentes ouve-se: Salve-se quem puder!
As tentativas de reforma do sistema capitalista foram
variadas e em todas elas o sistema se mostrou muito versátil em absorver e
“superar” (disfarçar, ocultar) os antagonismos sociais. Contudo, assim como
todos os sistemas sociais, políticos e econômicos que antecederam ao
capitalismo, este também está fadado ao seu esgotamento e consequente
substituição. A superação do capitalismo em direção a um sistema social mais
humano é hoje condição de sobrevivência para a espécie humana. O esgotamento
dos recursos naturais e as condições sociais opressoras, colocam a superação do
capitalismo como tarefa urgente e vital. Quem quiser ficar operando a máquina
registradora, que fique; aos demais, a vida convoca a viver autenticamente e
não apenas contabilizar a opressão e a exploração alheias.
No entanto, aos que quiserem soluções fáceis ou fórmulas
mágicas, adianto que não há tais soluções para a vida, esta exige ser
compreendida e encarada em toda sua totalidade e complexidade. No que diz
respeito a vida social, acredito que o fortalecimento das comunidades locais,
enquanto horizonte de ação, e o desenvolvimento de sistemas cooperativados de
serviços e produtos, sejam a base para uma mudança social consistente e
significativa. A este paradigma social, centrado nas comunidades locais podemos
chamar de comunitarismo, suas referências e modelos inspiradores remontam
as experiências das comunidades
sustentáveis (enquanto forma de organização e ritualização da vida social e
cultural), nas cooperativas (enquanto
modelo produtivo) e na economia solidária
(enquanto princípio das relações de troca).
Dentre os prejuízos humanos e planetários desencadeados
pelo capitalismo, um dos mais nocivos consiste na corrosão da própria humanidade do ser humano (por mais estranho que isto possa soar). Intenções e atitudes são marcadas, em geral, por falsidade, hipocrisia
e má-fé, por isso, tal sistema pode ser caracterizado como “a grande farsa”,
dado que nele tudo é falso, meramente aparente, o verdadeiro reino do
parecer-ser. Contudo, sejamos puros de coração: a verdade, a sinceridade (em
relação aos outros e em relação a si mesmos) e a boa-fé (em intenções e ações)
são fundamentos da ação capazes de edificar uma humanidade mais fraterna e
solidária. Ignorar as tendências anti-sociais e violentas do ser humano seria
ingenuidade e inclusive ignorância, porém, pensar que tais tendências devam
pautar a totalidade das relações sociais soa parcial e inclusive absurdo e tendencioso. Anseio que a
lógica social seja invertida, anseio que a verdade, a sinceridade e a boa-fé
sejam a regra (máxima) da ação e que, eventualmente, tenhamos que lidar com
casos esporádicos de injustiça e de violência. Jamais conseguiremos erigir uma
comunidade de santos, jamais extirparemos o mal do ser humano (já que este
compreende igualmente parte do humano ser que somos), mas, com certeza, podemos
fazer e viver de maneira diversa do que até então temos vivido. Nada está
pronto, tudo está por fazer, nossas capacidades criativas devem ser postas a
serviço da vida e da humanidade. Então, mãos a obra irmãos, temos muito o que fazer, apenas começamos!
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