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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Panis et circenses

A grande farsa
Luciano Palm
            Dia após dia, sol após sol, esforçamo-nos para viver uma vida vã e sem sentido. O único sentido socialmente aceito é o lucro. E nesta lógica, aquilo que não se converta em lucro, o que não tiver um valor de troca, simplesmente carece de qualquer valor na sociedade capitalista. A base fundamental de nossa sociedade consiste na exploração do homem pelo homem; a injustiça, a desigualdade e a violência são resultados lógicos (e parte integral) deste sistema.
            Além de nossa sociedade fundamentar-se na exploração e gerar a injustiça, a desigualdade e a violência como seus produtos, neste contexto, também o ser humano tem sua humanidade depreciada. Vivemos em um universo de coisas, em nossa sociedade as coisas tem mais valor do que o próprio ser humano, se mata e se morre por coisas, mas é-se completamente indiferente às mazelas sofridas pelas pessoas (inclusive as mais próximas). Também elas (nós), as pessoas (o impessoal, o “a gente”, o todos e o ninguém), tem apenas um valor de uso e não um valor em si mesmas (o que lhes garantiria uma dignidade propriamente humana). A desumanização parece ser o refluxo da evolução técnica e tecnológica, ampliamos os dispositivos técnicos de dominação e manipulação da natureza, enquanto exaurimos ao máximo as relações humanas, restringindo-as, quase que exclusivamente, a relações de interesse e de utilidade (em que os outros são vistos como simples meios/instrumentos para a realização de fins egoístas).
            Nesta sociedade, todas as dimensões humanas (intelectuais, psicológicas, emocionais, artísticas, espirituais) são diminuídas e empobrecidas a fim de serem aliciadas pelo mercado. A deturpação dos valores é geral. Cultura e educação passam a significar instrumentalização técnica para o trabalho ou entretenimento. Tudo parece ter perdido autenticidade, nada é verdadeiro na grande farsa, no reino do parecer-ser a massificação, a cópia, a imitação servil, a reprodução alienante, a superficialidade, a mediocridade configuraram-se em atitudes fundamentais no comércio social. A regra universal em nosso atual paradigma social e civilizatório parece dizer: Tudo o que é grande e nobre deve ser amesquinhado e rebaixado, até perder todo o seu valor e resumir-se meramente a um preço, isto é, a um simples valor de troca.
      O modelo social atual, promove uma sociabilidade que podemos caracterizar de agonística, pois, há uma tensão constante nas relações sociais, o outro ou os outros são considerados, na maioria das vezes, como adversários ou inimigos. Em nossa sociedade, inteligência passou a ser sinônimo de mau-caratismo, pois, “inteligente” é aquele que é mais esperto do que os outros, é quem consegue levar vantagem sobre os outros. Bondade, passou a ser sinônimo de servilismo e submissão passiva. Solidariedade, passou a ser sinônimo de ingenuidade ou hipocrisia. Amor, passou a ser sinônimo de sensualidade vulgar. Como se vê, tudo parece estar fora do lugar, nossa visão de mundo está turva ou míope, parece não haver mais ideais comuns, tudo o que restou foi um solipsismo melancólico e solitário (além de uma prateleira cheia de medicamentos para aplacar a dor e o vazio). Nossa sociedade agonística, competitiva, predatória, narcisística, consumista e egoísta, dá seus últimos suspiros e entre seus dentes ouve-se: Salve-se quem puder!
           
          As tentativas de reforma do sistema capitalista foram variadas e em todas elas o sistema se mostrou muito versátil em absorver e “superar” (disfarçar, ocultar) os antagonismos sociais. Contudo, assim como todos os sistemas sociais, políticos e econômicos que antecederam ao capitalismo, este também está fadado ao seu esgotamento e consequente substituição. A superação do capitalismo em direção a um sistema social mais humano é hoje condição de sobrevivência para a espécie humana. O esgotamento dos recursos naturais e as condições sociais opressoras, colocam a superação do capitalismo como tarefa urgente e vital. Quem quiser ficar operando a máquina registradora, que fique; aos demais, a vida convoca a viver autenticamente e não apenas contabilizar a opressão e a exploração alheias.
            No entanto, aos que quiserem soluções fáceis ou fórmulas mágicas, adianto que não há tais soluções para a vida, esta exige ser compreendida e encarada em toda sua totalidade e complexidade. No que diz respeito a vida social, acredito que o fortalecimento das comunidades locais, enquanto horizonte de ação, e o desenvolvimento de sistemas cooperativados de serviços e produtos, sejam a base para uma mudança social consistente e significativa. A este paradigma social, centrado nas comunidades locais podemos chamar de comunitarismo, suas referências e modelos inspiradores remontam as experiências das comunidades sustentáveis (enquanto forma de organização e ritualização da vida social e cultural), nas cooperativas (enquanto modelo produtivo) e na economia solidária (enquanto princípio das relações de troca).
          Dentre os prejuízos humanos e planetários desencadeados pelo capitalismo, um dos mais nocivos consiste na corrosão da própria humanidade do ser humano (por mais estranho que isto possa soar). Intenções e atitudes são marcadas, em geral, por falsidade, hipocrisia e má-fé, por isso, tal sistema pode ser caracterizado como “a grande farsa”, dado que nele tudo é falso, meramente aparente, o verdadeiro reino do parecer-ser. Contudo, sejamos puros de coração: a verdade, a sinceridade (em relação aos outros e em relação a si mesmos) e a boa-fé (em intenções e ações) são fundamentos da ação capazes de edificar uma humanidade mais fraterna e solidária. Ignorar as tendências anti-sociais e violentas do ser humano seria ingenuidade e inclusive ignorância, porém, pensar que tais tendências devam pautar a totalidade das relações sociais soa parcial e  inclusive absurdo e tendencioso. Anseio que a lógica social seja invertida, anseio que a verdade, a sinceridade e a boa-fé sejam a regra (máxima) da ação e que, eventualmente, tenhamos que lidar com casos esporádicos de injustiça e de violência. Jamais conseguiremos erigir uma comunidade de santos, jamais extirparemos o mal do ser humano (já que este compreende igualmente parte do humano ser que somos), mas, com certeza, podemos fazer e viver de maneira diversa do que até então temos vivido. Nada está pronto, tudo está por fazer, nossas capacidades criativas devem ser postas a serviço da vida e da humanidade. Então, mãos a obra irmãos, temos muito o que fazer, apenas começamos!

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