Eu sou
Luciano Palm
O
que sou eu? O que somos nós? Ou o que é a existência? O fluxo constante da
energia vital, o eterno vir-a-ser, o eterno retorno do ser em seu movimento
ininterrupto, a constante manifestação do ser em suas infinitas possibilidades.
Quando viemos a ser na condição
humana num primeiro momento, simplesmente somos um com o todo que nos cerca e
assim experienciamos a existência em toda a sua simplicidade, pureza, unidade e
plenitude. Mas neste primeiro momento ainda não temos consciência desta
condição, e quando percebemos já a esquecemos quase por completo por estarmos
imersos e ofuscados em uma condição inautêntica de ser, acabamos absorvidos
pelo ser social e coletivo, a partir desta perspectiva passamos a dizer: “Eu
sou Luciano”, “eu sou João ou Maria”, “sou professor, pedreiro ou engenheiro...
sou casado, homem ou mulher... sou cristão, muçulmano, budista ou hindu”. Todos
estes rótulos que nos aprisionam de uma certa forma, nos cegam ou nos fazem
esquecer de nosso ser autêntico e o ser que verdadeiramente somos é ofuscado em
função dos rótulos socialmente atribuídos e pessoalmente assumidos como sendo nosso
próprio ser.
O que faz com que na civilização, especialmente na
civilização técnico-tecnológica, tudo seja ilusório e enganoso, é o grande
reino do parecer-ser. Tudo carece de consistência e verdade. Constantemente diversos
mecanismos insistem em nos assaltar de nós mesmos, colocando-nos distantes de
nosso verdadeiro ser, variadas necessidades (a grande maioria igualmente
ilusórias, necessidades criadas, fetiches) nos fazem correr freneticamente
atrás de metas e objetivos que vão, em última instância, nos deixar sempre mais
distantes de nosso ser autêntico, trazendo mais estresse, infelicidade,
ansiedade, angústia e doenças das mais variadas ordens e tipos. Então, o que
somos além de nossas condições inautênticas? A resposta é simplesmente somos, e enquanto humanos, somos tendo a consciência do ser que somos, o que é um privilégio
em relação aos demais seres. Mas toda e qualquer manifestação do ser, pelo
simples fato de existir já é divina, se pensarmos no conjunto de combinações
cósmicas que tiveram que ocorrer para que sua manifestação fosse possível, todo
ser é um verdadeiro milagre se assim o quisermos compreender.
E o sofrimento? A dor, a angústia e a morte? Também fazem
parte desta realidade ilusória? Bem, a morte faz parte integral da vida como
vir-a-ser/devir, por outro lado, o sofrimento, a dor e a angústia ficam mais
por nossa parte, ou seja, elas dizem respeito a forma específica como um ser
consciente percebe a sua experiência vital, e em geral, resultam de uma
percepção equivocada e ilusória. Primeiramente, ignoramos que simplesmente somos um com o todo, não somos um nome,
não somos um número em um documento, não somos uma nacionalidade, não somos uma
religião, nem uma família, nada disso, todos estes são rótulos que foram
carimbados em nossa testa e que com o passar do tempo foram assimilados por nós
e ilusoriamente incorporados como nosso ser (quando na verdade, todos não
passam de negações de nosso ser autêntico em benefício da afirmação e
instituição do ser social e impessoal, no qual só podemos usufruir uma
existência inautêntica, isto é, nele somos sempre um ser-para, uma espécie de instrumento que serve para alguma coisa e
nunca um ser autêntico, autônomo e livre). Neste sentido, erroneamente passamos
a acreditar que nossa felicidade, bem-estar e realização consistem em
satisfazer as necessidades, metas e objetivos estabelecidos pelo ser social,
isto é, pela exterioridade, pelo ser-para. “Eu
sou” significa então a presença de
uma consciência, e é nela que podemos encontrar nossa verdadeira felicidade
e realização. Ao passo que, ao contrário, quando somos desviados ou
impossibilitados de algum modo de estarmos
presentes com/em nossa consciência, o sofrimento, a infelicidade e a
depressão nos assolam inevitavelmente, pois, neste caso, estaremos realizando
um não-ser, estaremos negando ou impedindo a possibilidade de realização de
nosso próprio ser, a realização plena e livre de nossas energias criativas e
divinas, e a negação de nosso ser autêntico significa a própria morte em vida
para a consciência.
E o que é possível fazer diante desta situação? Nada.
Embora muitas causas se coloquem como vias de salvação, a luta pelas questões
ambientais, a transformação social e política, etc. e etc.. Nada disso
resolverá enquanto não estivermos intimamente harmonizados com nossa própria
consciência e consequentemente com o todo, pois, a realidade é a própria
consciência refletida, ou seja, ela é uma representação ou projeção da
consciência a partir do tempo e do espaço, isto é, a partir da experiência
psico-física. O que não significa que, dentro de nossas possibilidades, não
colaboremos para a melhoria do contexto em que temos nossa experiência vital,
sim, colaboremos da melhor forma possível, mas não dependamos da efetivação das
melhorias para alcançarmos nossa harmonização existencial. Inclusive, despertos
em nossa consciência de simplesmente sermos um com o todo, teremos melhores
condições de transformarmos a exterioridade, o que inevitavelmente ocorrerá a
partir do despertar da consciência, e não o contrário.
O caminho, ou os caminhos, para o despertar são
infinitamente variados e dependem da trajetória de cada ser. Mas, em qualquer
caso, o despertar da consciência fundamenta-se em uma atitude íntima de conexão
consigo mesmo e com o todo. Tal atitude íntima consiste na transcendência,
contudo, não em uma transcendência extática (ou seja, baseada em um êxtase, em
um movimento que nos remete para fora do eixo de nosso ser, movimento a partir
do qual somos absorvidos por algo maior e externo); mas em uma transcendência
enstática (ou seja, no mergulho ao íntimo do ser que somos, transcendendo todos
os rótulos e todos os predicados e permanecendo no domínio íntimo do ser, sendo
todo presença no aqui e no agora). Desse modo, teremos atingido o estado do
grande observador, seremos testemunhas do ser enquanto o grande reino das
possibilidades, sem sermos perturbados e abalados pelos condicionamentos
fortuitos do devir ou do vir-a-ser. Apenas observar e deixar o vir-a-ser seguir
naturalmente o seu curso, sem julgamentos morais, expectativas ou pretensões de
conduzir o fluxo do devir. Estar no domínio de si e jogar o jogo da existência
a partir das regras dadas (das condições estabelecidas) naquele exato momento
(aqui e agora), é tudo o que um ser consciente (desperto) pode fazer. Querer
mais do que isto não passa de orgulho, arrogância e pretensão, é imaginar
ingenuamente que o mundo deva corresponder as expectativas turvas e limitadas
de nosso ego, mas nós não somos o nosso ego, nós simplesmente somos, somos um
ser que tem no ego uma de suas possibilidades, mas que não corresponde a
integralidade e a plenitude do ser. Desse modo, limitar-se ao ego significa
limitar-se aos condicionamentos do vir-a-ser, é permanecer preso a imanência do
devir, e só teremos despertado verdadeiramente enquanto consciência, quando
finalmente transcendermos o ego e todos os seus condicionamentos, neste
momento, o ser profano e limitado identificar-se-á com o divino, que jamais
esteve distante dele, mas sim em si mesmo, em seu íntimo, apenas haviam
demasiados obstáculos obstruindo sua visão e compreensão. A liberação, a
iluminação ou o despertar da consciência se encontra então na transcendência
dos condicionamentos e limitações do devir, do vir-a-ser, sobretudo aqueles
oriundos do ego, ou seja, da experiência condicionada subjetiva.
Para finalizar, a transcendência do ego consiste na mais
profunda experiência de liberdade para um ser humano. Falávamos anteriormente
em sofrimento, angústia e dor, eis agora a identificação do principal algoz
destes estados, isto é, o ego. Sofremos e nos angustiamos basicamente pelo
apego de nosso ego, a pessoas, coisas, status, conforto, etc. e etc.. Então,
transcender o ego e despertar para a plenitude da consciência, significa em
última instância, superar o sofrimento, a angústia e a própria dor. O ego nos
coloca na falsa posição de senhores e donos do mundo, da natureza, dos animais,
dos outros seres humanos, quiçá do universo, pois, com o aparato tecnológico
começamos a estender os tentáculos egoicos para toda galáxia, fincamos
bandeiras na lua, enviamos satélites para o espaço, enviamos robôs para
analisar outros planetas. Em relação a outros egos nos colocamos na posição ou
de adversários ou de inimigos e operamos uma verdadeira carneficina,
comprometemos seriamente as estruturas do planeta e violentamo-nos ferozmente
(física e psiquicamente) em nome de uma riqueza material que empobrece
severamente o ser humano transformando-o em um androide miserável, que
compreende-se como uma coisa, e ainda mais absurdo, uma coisa com valor
inferior as coisas criadas por ele mesmo.
Desse modo, só posso compreender o caminho do despertar
através do respeito integral, inicialmente, a si mesmo, e depois aos outros
seres humanos e a natureza. Pisar na grama verde, comungar com a natureza e com
todos os seres o milagre da vida, ser mais do que um simples pagador de contas,
estar plenamente presente aqui e agora com a consciência significa divinizar a
existência. Se ainda não o vemos é porque nossa consciência ainda se encontra
presa aos cárceres do ego e dos condicionamentos em que ele se enreda.
Abandonar a profana condição e alçar vôo com as asas do infinito rumo a
consciência divina depende do despertar para o ser autêntico, que é consciência
plena de ser, simplesmente ser.
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