respire

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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Eu sou
Luciano Palm

            O que sou eu? O que somos nós? Ou o que é a existência? O fluxo constante da energia vital, o eterno vir-a-ser, o eterno retorno do ser em seu movimento ininterrupto, a constante manifestação do ser em suas infinitas possibilidades. Quando viemos a ser na condição humana num primeiro momento, simplesmente somos um com o todo que nos cerca e assim experienciamos a existência em toda a sua simplicidade, pureza, unidade e plenitude. Mas neste primeiro momento ainda não temos consciência desta condição, e quando percebemos já a esquecemos quase por completo por estarmos imersos e ofuscados em uma condição inautêntica de ser, acabamos absorvidos pelo ser social e coletivo, a partir desta perspectiva passamos a dizer: “Eu sou Luciano”, “eu sou João ou Maria”, “sou professor, pedreiro ou engenheiro... sou casado, homem ou mulher... sou cristão, muçulmano, budista ou hindu”. Todos estes rótulos que nos aprisionam de uma certa forma, nos cegam ou nos fazem esquecer de nosso ser autêntico e o ser que verdadeiramente somos é ofuscado em função dos rótulos socialmente atribuídos e pessoalmente assumidos como sendo nosso próprio ser.

            O que faz com que na civilização, especialmente na civilização técnico-tecnológica, tudo seja ilusório e enganoso, é o grande reino do parecer-ser. Tudo carece de consistência e verdade. Constantemente diversos mecanismos insistem em nos assaltar de nós mesmos, colocando-nos distantes de nosso verdadeiro ser, variadas necessidades (a grande maioria igualmente ilusórias, necessidades criadas, fetiches) nos fazem correr freneticamente atrás de metas e objetivos que vão, em última instância, nos deixar sempre mais distantes de nosso ser autêntico, trazendo mais estresse, infelicidade, ansiedade, angústia e doenças das mais variadas ordens e tipos. Então, o que somos além de nossas condições inautênticas? A resposta é simplesmente somos, e enquanto humanos, somos tendo a consciência do ser que somos, o que é um privilégio em relação aos demais seres. Mas toda e qualquer manifestação do ser, pelo simples fato de existir já é divina, se pensarmos no conjunto de combinações cósmicas que tiveram que ocorrer para que sua manifestação fosse possível, todo ser é um verdadeiro milagre se assim o quisermos compreender.           

             E o sofrimento? A dor, a angústia e a morte? Também fazem parte desta realidade ilusória? Bem, a morte faz parte integral da vida como vir-a-ser/devir, por outro lado, o sofrimento, a dor e a angústia ficam mais por nossa parte, ou seja, elas dizem respeito a forma específica como um ser consciente percebe a sua experiência vital, e em geral, resultam de uma percepção equivocada e ilusória. Primeiramente, ignoramos que simplesmente somos um com o todo, não somos um nome, não somos um número em um documento, não somos uma nacionalidade, não somos uma religião, nem uma família, nada disso, todos estes são rótulos que foram carimbados em nossa testa e que com o passar do tempo foram assimilados por nós e ilusoriamente incorporados como nosso ser (quando na verdade, todos não passam de negações de nosso ser autêntico em benefício da afirmação e instituição do ser social e impessoal, no qual só podemos usufruir uma existência inautêntica, isto é, nele somos sempre um ser-para, uma espécie de instrumento que serve para alguma coisa e nunca um ser autêntico, autônomo e livre). Neste sentido, erroneamente passamos a acreditar que nossa felicidade, bem-estar e realização consistem em satisfazer as necessidades, metas e objetivos estabelecidos pelo ser social, isto é, pela exterioridade, pelo ser-para. “Eu sou” significa então a presença de uma consciência, e é nela que podemos encontrar nossa verdadeira felicidade e realização. Ao passo que, ao contrário, quando somos desviados ou impossibilitados de algum modo de estarmos presentes com/em nossa consciência, o sofrimento, a infelicidade e a depressão nos assolam inevitavelmente, pois, neste caso, estaremos realizando um não-ser, estaremos negando ou impedindo a possibilidade de realização de nosso próprio ser, a realização plena e livre de nossas energias criativas e divinas, e a negação de nosso ser autêntico significa a própria morte em vida para a consciência.

            E o que é possível fazer diante desta situação? Nada. Embora muitas causas se coloquem como vias de salvação, a luta pelas questões ambientais, a transformação social e política, etc. e etc.. Nada disso resolverá enquanto não estivermos intimamente harmonizados com nossa própria consciência e consequentemente com o todo, pois, a realidade é a própria consciência refletida, ou seja, ela é uma representação ou projeção da consciência a partir do tempo e do espaço, isto é, a partir da experiência psico-física. O que não significa que, dentro de nossas possibilidades, não colaboremos para a melhoria do contexto em que temos nossa experiência vital, sim, colaboremos da melhor forma possível, mas não dependamos da efetivação das melhorias para alcançarmos nossa harmonização existencial. Inclusive, despertos em nossa consciência de simplesmente sermos um com o todo, teremos melhores condições de transformarmos a exterioridade, o que inevitavelmente ocorrerá a partir do despertar da consciência, e não o contrário.           

         O caminho, ou os caminhos, para o despertar são infinitamente variados e dependem da trajetória de cada ser. Mas, em qualquer caso, o despertar da consciência fundamenta-se em uma atitude íntima de conexão consigo mesmo e com o todo. Tal atitude íntima consiste na transcendência, contudo, não em uma transcendência extática (ou seja, baseada em um êxtase, em um movimento que nos remete para fora do eixo de nosso ser, movimento a partir do qual somos absorvidos por algo maior e externo); mas em uma transcendência enstática (ou seja, no mergulho ao íntimo do ser que somos, transcendendo todos os rótulos e todos os predicados e permanecendo no domínio íntimo do ser, sendo todo presença no aqui e no agora). Desse modo, teremos atingido o estado do grande observador, seremos testemunhas do ser enquanto o grande reino das possibilidades, sem sermos perturbados e abalados pelos condicionamentos fortuitos do devir ou do vir-a-ser. Apenas observar e deixar o vir-a-ser seguir naturalmente o seu curso, sem julgamentos morais, expectativas ou pretensões de conduzir o fluxo do devir. Estar no domínio de si e jogar o jogo da existência a partir das regras dadas (das condições estabelecidas) naquele exato momento (aqui e agora), é tudo o que um ser consciente (desperto) pode fazer. Querer mais do que isto não passa de orgulho, arrogância e pretensão, é imaginar ingenuamente que o mundo deva corresponder as expectativas turvas e limitadas de nosso ego, mas nós não somos o nosso ego, nós simplesmente somos, somos um ser que tem no ego uma de suas possibilidades, mas que não corresponde a integralidade e a plenitude do ser. Desse modo, limitar-se ao ego significa limitar-se aos condicionamentos do vir-a-ser, é permanecer preso a imanência do devir, e só teremos despertado verdadeiramente enquanto consciência, quando finalmente transcendermos o ego e todos os seus condicionamentos, neste momento, o ser profano e limitado identificar-se-á com o divino, que jamais esteve distante dele, mas sim em si mesmo, em seu íntimo, apenas haviam demasiados obstáculos obstruindo sua visão e compreensão. A liberação, a iluminação ou o despertar da consciência se encontra então na transcendência dos condicionamentos e limitações do devir, do vir-a-ser, sobretudo aqueles oriundos do ego, ou seja, da experiência condicionada subjetiva.

            Para finalizar, a transcendência do ego consiste na mais profunda experiência de liberdade para um ser humano. Falávamos anteriormente em sofrimento, angústia e dor, eis agora a identificação do principal algoz destes estados, isto é, o ego. Sofremos e nos angustiamos basicamente pelo apego de nosso ego, a pessoas, coisas, status, conforto, etc. e etc.. Então, transcender o ego e despertar para a plenitude da consciência, significa em última instância, superar o sofrimento, a angústia e a própria dor. O ego nos coloca na falsa posição de senhores e donos do mundo, da natureza, dos animais, dos outros seres humanos, quiçá do universo, pois, com o aparato tecnológico começamos a estender os tentáculos egoicos para toda galáxia, fincamos bandeiras na lua, enviamos satélites para o espaço, enviamos robôs para analisar outros planetas. Em relação a outros egos nos colocamos na posição ou de adversários ou de inimigos e operamos uma verdadeira carneficina, comprometemos seriamente as estruturas do planeta e violentamo-nos ferozmente (física e psiquicamente) em nome de uma riqueza material que empobrece severamente o ser humano transformando-o em um androide miserável, que compreende-se como uma coisa, e ainda mais absurdo, uma coisa com valor inferior as coisas criadas por ele mesmo.          

           Desse modo, só posso compreender o caminho do despertar através do respeito integral, inicialmente, a si mesmo, e depois aos outros seres humanos e a natureza. Pisar na grama verde, comungar com a natureza e com todos os seres o milagre da vida, ser mais do que um simples pagador de contas, estar plenamente presente aqui e agora com a consciência significa divinizar a existência. Se ainda não o vemos é porque nossa consciência ainda se encontra presa aos cárceres do ego e dos condicionamentos em que ele se enreda. Abandonar a profana condição e alçar vôo com as asas do infinito rumo a consciência divina depende do despertar para o ser autêntico, que é consciência plena de ser, simplesmente ser.

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