Tatiana Palm
Dez
dias de silêncio. Todos saem dele tão cheios, com tanto pra falar e, eu, tão
vazia. Não havia nada em mim para ser dito. Ao final, o que dizer? Que foi
intenso quanto aos ensinamentos e na mesma proporção no sofrimento, no
conflito? No silêncio algo em mim gritava, constantemente. No barulho de um
silêncio angustiante falava ora a consciência de não estar inteiramente
entregue como havia me comprometido, ora o sofrimento e a difícil aceitação de
estar ali, aparentemente, no caminho do descaminho. Foram dez dias de imersão
em si mesmo, dez dias sem falar, sem ler, sem escrever, e, em que se evitava,
inclusive, o contato visual. Já no final do primeiro diz quis fugir, arrumar as
malas e partir. Quase todos os dias pensava em desistir. Não houve um único dia
que não senti dor. O corpo e a mente gritavam para sair de lá. O que me
confortava era ter compreendido que a natureza de todas as coisas é a
impermanência. Assim, consciente de que a dor e o tempo eram impermanentes,
chego ao fim. E, no fim, o que encontro? O nada. Existia em mim um espaço vazio,
simplesmente. O choro brota e não faz questão de esconder-se tampouco quer
cessar. Choro sem porquê assim como a flor vive, sem porquê.
“A
vida é sofrimento” diz Schopenhauer, influenciado pelo pensamento budista. O sofrimento,
já faz algum tempo, é estranho para mim, certamente, porque o estado de onde
parti para envolver-me com o silêncio de dez dias era de paz e equilíbrio, sem
dúvida, por estar na natureza. Retiro-me. Recolho-me. Silencio. Sofro. É
difícil aceitar o sofrimento, principalmente, quando se está apegado a um
estado de silêncio e contentamento (alegria e presença). Agora, me era exigido
aceitar o estado de silêncio e sofrimento. Na perspectiva budista, todo
sofrimento é positivo, existe para ser superado. Como? Buda aponta o caminho: a
liberação do sofrimento é dada por Dhamma.
O caminho de Dhamma é o que fomos aprender
ali, na quietude dos dez dias. Esse caminho envolve três elementos (treinamentos):
sila – samãdhi – paññã. Sila diz
respeito a moralidade, mas não tal como a compreendemos habitualmente, senão em
um sentido mais amplo. Em outros termos, refere-se ao colocar-se em acordo com
a lei da natureza. Como sou parte do mundo natural, devo seguir a mesma lei, a da
natureza. Comprometidos com sila
adentramos na esfera da mente, habitualmente insensível e grosseira. Samadhi, a concentração em um único ponto
visava não apenas o domínio da mente senão também deixa-lá mais refinada, com
maior sensibilidade.
Da
sensibilidade da mente ao mundo das sensações. Tornamo-nos caçadores das
sensações. Conscientes do corpo é preciso tornar-se conscientes das sensações
que por ele passam, em cada uma das suas partes. Certamente, o que primeiro
percebemos são sensações grosseiras, a mais densa, a dor, e, outras ainda, como
o calor e o frio; progressivamente, é possível perceber as sensações mais sutis
tais como vibrações, descargas elétricas (arrepios), o corpo em uma única pulsação.
Quando a mente for sensível e suficientemente atenta e equânime poder-se-á sentir
sensações por todo o corpo, diferentes sensações. Mais do que isso poderemos
chegar ao estado de dissolução. Tornar-se um fluxo sutilmente livre a ponto de
dissolver-se as fronteiras entre externo e interno, o que nada mais é do que tornar-se o espaço de pura energia, de vibração (ondulações). O espaço não delimitado é o
vazio que pulsa, pulsa, e, vive (está vivo).
Quando
nos voltamos para o mundo das sensações entramos em vipassana, o espaço de paññã – a verdade (sabedoria). Para isso
partimos da realidade tal como ela é: a partir do corpo, as sensações. E tudo
começa com a respiração tal como ela é, e, através do corpo, chegamos até as
sensações tal como elas são. Não é preciso fazer nada, apenas estar atento as
sensações, sejam elas grosseiras ou sutis. Na verdade, não há grau de valor
entre umas e outras, o que importa é reconhecer que todas possuem a mesma
natureza, a de ir e vir, de surgir e desaparecer. Elas passam, eu passarinho”.
Como passarinho é preciso estar além, livre, do movimento de ir e vir; acima do
fluir ocasionado pela impermanência. Vipassana nos faz compreender que a
natureza de todas as coisas é anicca -
a impermanência. Estar no mundo de maya é, exatamente, não reconhecer que tudo
passa, que tudo é e não é, que tudo muda. Vipassana nos faz experenciar,
a partir da dor, a impermanência das sensações e nos ensina a equanimidade
diante delas. Ser equânime significa não reagir, não possui aversão nem avidez
pelas sensações que passam por nosso corpo, que vão e vem, que são agradáveis e
desagradáveis. A avidez envolve o desejo e o apego - o alimento do ego,
enquanto que, a aversão envolve a raiva. A equanimidade está acima disso, é a
estabilidade mental que, por sua vez, conduz a um estado de paz e alegria. A equanimidade
mental é liberta(D)or.
A
equanimidade que aprendemos a desenvolver frente as sensações que passam pelo
corpo se estende ao que se passa fora de nós, no mundo exterior. Equânimes frete
as situações da vida, por aceitar e reconhecer a impermanência de tudo o que
existe, seremos humanos libertos de todo e qualquer sofrimento. Equânimes viveremos
equilibrados e em paz, um estado de consciência superior àquele que a maioria
de nós se encontra, um estado mental conturbado, contaminado, sujo como a água
de um rio. Filosoficamente, podemos dizer que a equanimidade é, em última instância,
a superação do mundo da dualidade. Quando nos tornamos equânimes deixamos de
alimentar a mente e, simplesmente, nosso ego se dissolve. Se não temos nem
aversão nem avidez, no espaço do nada, os sankhãras,
velhos e subterrâneos, começam a vir à tona. As sensação, segundo a visão de
Buda, são vibrações que ressoam até o inconsciente, logo, temos acesso aos
porões do nossa mente pelas sensações. Quando criamos o espaço para que elas se
manifestem, para que espontaneamente as sensações surjam e desapareçam, em
última instância, possibilitamos ao inconsciente se tornar consciente e, assim,
uma cura acontece. Uma mente equânime torna-se assim uma mente pura (pois está
livre de traços que lhe marca profundamente) e uma mente estável (pois, deixa
de criar novos sankhãras, as reações de
desejo ou, o contrário, de repulsa ou raiva.
Na
perspectiva de Buda, existem quatro grandes nobres verdades: primeira, o
sofrimento existe. Todos sofremos, o que experimentamos coletivamente no retiro
de dez dias. Segunda, a causa do sofrimento é interna: sofremos porque reagimos
as nossas sensações. Aquelas que nos agradam conduzem ao desejo e ao apego e as
desagradáveis nos dão aversão e, assim, não aceitamos as coisas tal como elas
são, e, sofremos por elas não serem tal como gostaríamos que fossem. Não reconhecemos
a impermanência de tudo o que existe, inclusive, em nós mesmos. Terceira, o fim
do sofrimento se dá pela equanimidade. Equanimidade, basicamente, consiste em
não reagir diante das sensações, mais além, diante do mundo. É não estar
envolvido com o que passa, com o que muda, em outras palavras, estar liberto do
mundo da dualidade, dos pares de opostos. Filosoficamente, podemos dizer que
superamos a ilusão, o mundo das aparências quando nos tornamos equânimes. A quarta
e última verdade diz respeito ao caminho que conduz e envolve a equanimidade. O
caminho de Dhamma é o que trilhamos
durante os dez dias de silêncio, do sofrimento e da verdade experenciada em si
mesmo: a verdade do sofrimento, a verdade da impermanência, a verdade da
equanimidade, a verdade da alegria. Vipassana, é ir as coisas mesmas, deixar
elas ser o que são: impermanentes. Não se envolver, apenas observar: sem envolvimento,
não há reação apenas presença, atenção. É manter-se além de: da aversão-avidez,
do desejo-raiva, do agradável-desagradável, portanto, é a transcendência da
mera dualidade, o mundo da ilusão. É aprender a ser o observador do que se
passa em si, mediante a aceitação da realidade tal como ela, consciente da sua impermanência.
Ir as coisas mesmas significa, então, em última instância, tornar-se um eu
observador (de si), um observador equânime na impermanência do que é vivo: um dançarino
em equilíbrio no dinâmico.
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