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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Vipassana: o silêncio de dez dias

 
Tatiana Palm
 


Dez dias de silêncio. Todos saem dele tão cheios, com tanto pra falar e, eu, tão vazia. Não havia nada em mim para ser dito. Ao final, o que dizer? Que foi intenso quanto aos ensinamentos e na mesma proporção no sofrimento, no conflito? No silêncio algo em mim gritava, constantemente. No barulho de um silêncio angustiante falava ora a consciência de não estar inteiramente entregue como havia me comprometido, ora o sofrimento e a difícil aceitação de estar ali, aparentemente, no caminho do descaminho. Foram dez dias de imersão em si mesmo, dez dias sem falar, sem ler, sem escrever, e, em que se evitava, inclusive, o contato visual. Já no final do primeiro diz quis fugir, arrumar as malas e partir. Quase todos os dias pensava em desistir. Não houve um único dia que não senti dor. O corpo e a mente gritavam para sair de lá. O que me confortava era ter compreendido que a natureza de todas as coisas é a impermanência. Assim, consciente de que a dor e o tempo eram impermanentes, chego ao fim. E, no fim, o que encontro? O nada. Existia em mim um espaço vazio, simplesmente. O choro brota e não faz questão de esconder-se tampouco quer cessar. Choro sem porquê assim como a flor vive, sem porquê.

“A vida é sofrimento” diz Schopenhauer, influenciado pelo pensamento budista. O sofrimento, já faz algum tempo, é estranho para mim, certamente, porque o estado de onde parti para envolver-me com o silêncio de dez dias era de paz e equilíbrio, sem dúvida, por estar na natureza. Retiro-me. Recolho-me. Silencio. Sofro. É difícil aceitar o sofrimento, principalmente, quando se está apegado a um estado de silêncio e contentamento (alegria e presença). Agora, me era exigido aceitar o estado de silêncio e sofrimento. Na perspectiva budista, todo sofrimento é positivo, existe para ser superado. Como? Buda aponta o caminho: a liberação do sofrimento é dada por Dhamma. O caminho de Dhamma é o que fomos aprender ali, na quietude dos dez dias. Esse caminho envolve três elementos (treinamentos): silasamãdhipaññã. Sila diz respeito a moralidade, mas não tal como a compreendemos habitualmente, senão em um sentido mais amplo. Em outros termos, refere-se ao colocar-se em acordo com a lei da natureza. Como sou parte do mundo natural, devo seguir a mesma lei, a da natureza. Comprometidos com sila adentramos na esfera da mente, habitualmente insensível e grosseira. Samadhi, a concentração em um único ponto visava não apenas o domínio da mente senão também deixa-lá mais refinada, com maior sensibilidade.



Da sensibilidade da mente ao mundo das sensações. Tornamo-nos caçadores das sensações. Conscientes do corpo é preciso tornar-se conscientes das sensações que por ele passam, em cada uma das suas partes. Certamente, o que primeiro percebemos são sensações grosseiras, a mais densa, a dor, e, outras ainda, como o calor e o frio; progressivamente, é possível perceber as sensações mais sutis tais como vibrações, descargas elétricas (arrepios), o corpo em uma única pulsação. Quando a mente for sensível e suficientemente atenta e equânime poder-se-á sentir sensações por todo o corpo, diferentes sensações. Mais do que isso poderemos chegar ao estado de dissolução. Tornar-se um fluxo sutilmente livre a ponto de dissolver-se as fronteiras entre externo e interno, o que nada mais é do que tornar-se o espaço de pura energia, de vibração (ondulações). O espaço não delimitado é o vazio que pulsa, pulsa, e, vive (está vivo).

Quando nos voltamos para o mundo das sensações entramos em vipassana, o espaço de paññã – a verdade (sabedoria). Para isso partimos da realidade tal como ela é: a partir do corpo, as sensações. E tudo começa com a respiração tal como ela é, e, através do corpo, chegamos até as sensações tal como elas são. Não é preciso fazer nada, apenas estar atento as sensações, sejam elas grosseiras ou sutis. Na verdade, não há grau de valor entre umas e outras, o que importa é reconhecer que todas possuem a mesma natureza, a de ir e vir, de surgir e desaparecer. Elas passam, eu passarinho”. Como passarinho é preciso estar além, livre, do movimento de ir e vir; acima do fluir ocasionado pela impermanência. Vipassana nos faz compreender que a natureza de todas as coisas é anicca - a impermanência. Estar no mundo de maya é, exatamente, não reconhecer que tudo passa, que tudo é e não é, que tudo muda. Vipassana nos faz experenciar, a partir da dor, a impermanência das sensações e nos ensina a equanimidade diante delas. Ser equânime significa não reagir, não possui aversão nem avidez pelas sensações que passam por nosso corpo, que vão e vem, que são agradáveis e desagradáveis. A avidez envolve o desejo e o apego - o alimento do ego, enquanto que, a aversão envolve a raiva. A equanimidade está acima disso, é a estabilidade mental que, por sua vez, conduz a um estado de paz e alegria. A equanimidade mental é liberta(D)or.

A equanimidade que aprendemos a desenvolver frente as sensações que passam pelo corpo se estende ao que se passa fora de nós, no mundo exterior. Equânimes frete as situações da vida, por aceitar e reconhecer a impermanência de tudo o que existe, seremos humanos libertos de todo e qualquer sofrimento. Equânimes viveremos equilibrados e em paz, um estado de consciência superior àquele que a maioria de nós se encontra, um estado mental conturbado, contaminado, sujo como a água de um rio. Filosoficamente, podemos dizer que a equanimidade é, em última instância, a superação do mundo da dualidade. Quando nos tornamos equânimes deixamos de alimentar a mente e, simplesmente, nosso ego se dissolve. Se não temos nem aversão nem avidez, no espaço do nada, os sankhãras, velhos e subterrâneos, começam a vir à tona. As sensação, segundo a visão de Buda, são vibrações que ressoam até o inconsciente, logo, temos acesso aos porões do nossa mente pelas sensações. Quando criamos o espaço para que elas se manifestem, para que espontaneamente as sensações surjam e desapareçam, em última instância, possibilitamos ao inconsciente se tornar consciente e, assim, uma cura acontece. Uma mente equânime torna-se assim uma mente pura (pois está livre de traços que lhe marca profundamente) e uma mente estável (pois, deixa de criar novos sankhãras, as reações de desejo ou, o contrário, de repulsa ou raiva.


 

Na perspectiva de Buda, existem quatro grandes nobres verdades: primeira, o sofrimento existe. Todos sofremos, o que experimentamos coletivamente no retiro de dez dias. Segunda, a causa do sofrimento é interna: sofremos porque reagimos as nossas sensações. Aquelas que nos agradam conduzem ao desejo e ao apego e as desagradáveis nos dão aversão e, assim, não aceitamos as coisas tal como elas são, e, sofremos por elas não serem tal como gostaríamos que fossem. Não reconhecemos a impermanência de tudo o que existe, inclusive, em nós mesmos. Terceira, o fim do sofrimento se dá pela equanimidade. Equanimidade, basicamente, consiste em não reagir diante das sensações, mais além, diante do mundo. É não estar envolvido com o que passa, com o que muda, em outras palavras, estar liberto do mundo da dualidade, dos pares de opostos. Filosoficamente, podemos dizer que superamos a ilusão, o mundo das aparências quando nos tornamos equânimes. A quarta e última verdade diz respeito ao caminho que conduz e envolve a equanimidade. O caminho de Dhamma é o que trilhamos durante os dez dias de silêncio, do sofrimento e da verdade experenciada em si mesmo: a verdade do sofrimento, a verdade da impermanência, a verdade da equanimidade, a verdade da alegria. Vipassana, é ir as coisas mesmas, deixar elas ser o que são: impermanentes. Não se envolver, apenas observar: sem envolvimento, não há reação apenas presença, atenção. É manter-se além de: da aversão-avidez, do desejo-raiva, do agradável-desagradável, portanto, é a transcendência da mera dualidade, o mundo da ilusão. É aprender a ser o observador do que se passa em si, mediante a aceitação da realidade tal como ela, consciente da sua impermanência. Ir as coisas mesmas significa, então, em última instância, tornar-se um eu observador (de si), um observador equânime na impermanência do que é vivo: um dançarino em equilíbrio no dinâmico.


 

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