respire

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terça-feira, 19 de abril de 2011

Medita-ação

Medita-ação:
o sagrado não se ensina, se sente no silêncio
Tatiana Palm
          O desassossego do coração vinha de fora, da vida tal como ela é vivida por todos, do modo limitado como a maioria de nós percebe o próprio mundo circundante. É assim que começa a se abrigar em seu íntimo o descontentamento e o desejo de ter uma vida que não fosse semelhante a dos outros. Com o espírito insatisfeito também o coração não se sente saciado, e, embalado pela insaciedade e insatisfação o ser dela buscou o “ser diferente”, o “ser autêntico”. Como se encontrava na aurora da vida o “ser diferente”, inicialmente, se manifestou no seu modo de ser (de vestir, pensar, dançar). A meta consistia em delimitar claramente a sua diferença em relação aos outros, ao “a gente“. Os outros (a gente) nada mais é do que todo mundo e, ao mesmo tempo, ninguém determinado que vem ao encontro em nosso mundo circundante. Certamente, não poderia ser de outro modo quando chega o momento de escolher a profissão. É verdade que o contexto socio-econômico tem lá a sua parcela de culpa quando ela opta por se tornar uma estudante de filosofia. Contudo, se a decisão foi ocasional ou fortuita, foi voluntariamente que se prendeu a teia de indagações, pensamentos e pretensas verdades filosóficas. Parecia ser esse um bom caminho para prosseguir buscando não ser mais uma humana medíocre (comum).
          Ela se sente impelida a beber, insaciavelmente, nas fontes da filosofia a fim de se diferenciar e elevar ao nível dos outros, dos homens comuns e medíocres. Assim, no mundo da filosofia tudo passa a ser alvo de questionamento, dúvida, reflexão. Passou a estar a procura de respostas para o seu mundo, para aquilo que ignorava e que, a partir do momento que conheceu, lhe fascinou, encantou, inquietou. Sentiu afinidade com os pensadores que se dedicaram a encontrar palavras capazes de descrever a existência em sua nudez, capazes de contar a vida naquilo que ela é. Ela conheceu o significado de filosofia, foi por ela seduzida, obteve o conhecimento de muitas teorias filosóficas, almejou o conhecimento, e, assim, a desconfiança com relação as “verdades” religiosas ecoava em toda parte, exalando aqui e ali o seu inquietante aroma. O fato é que com o passar dos anos a sua fé diminuiu, mais exatamente, desapareceu. A filosofia ocupou o lugar da religião. Se, inicialmente, se preocupou em ampliar o seu limitado conhecimento a respeito das religiões, posteriormente, deixou de abrir os livros que falam das doutrinas religiosas para ocupar-se dos sistemas filosóficos. Com a filosofia, a existência mundana desvelava-se bem próxima, compreensível de uma perspectiva jamais imaginada, porém, o desassossego não foi aquietado, o coração não estava saciado. E entre todos os pensamentos e sistemas filosóficos em que se aprofundava, não existia nenhum capaz de cessar a sua busca. Cada conhecimento obtido apenas provocava nela nova sede, sentira-se sedenta e ferida, andava sempre com esse mesmo impulso: a busca.
          O que passou a nortear a sua existência foi a arte de pensar, de questionar, de duvidar. Os homens do mundo, aqueles tolos, permanecem estranhos a isso. Escorrem-se os anos e a maioria deles pemanecem agasalhados no conforto de uma estabilidade inquientante, sendo que quando não a tem empenha-se arduamente para alcançar isso: uma vida estabilizada. O desassossego que lhe acompanhava desde a aurora da vida tinha um quê misterioso e justamente porque nunca foi ignorado a conduziu aos braços da filosofia. Esforçada e empenhadamente adentrou em um mundo completamente desconhecido, o mundo das idéias, para a partir dele compreender o mundo vivido. Começou a perseguir o conhecimeto produzido por venerados e respeitados pensadores e, por isso, com eles dialogou ao consultar os seus escritos. Na verdade, ela gastou tempo para aprender a ter uma atitude filosófica, para aprender a compreender os textos filosóficos e a busca racional se converteu em um saber que reflete no seu modo de perceber o mundo.
          O pensador (o filósofo) supera os homens comuns, principalmente, em um ponto, a saber, na consciência que obtém acerca do mundo, das coisas do mundo, do existir no mundo. Isso, certamente, não é insignificante, mas houve momentos em que ela passou a duvidar do valor de tal conhecimento, isto é, dessa consciência do mundo. Por ter consciência do mundo o pensador se sente diferente, e, muitas vezes, superior aos outros, homens comuns, mas será que não se iguala a eles na medida em que mesmo tendo posse de uma tal consciência, na prática, vive de modo pouco diverso? É certo que, muito sabiam eles, os consagrados filósofos, pois, com tudo se preocupavam, desde a origem da linguagem ao papel do inconsciente, desde os limites do conhecimento humano a origem do mundo. Sabiam inúmeras coisas valiosas para quem estava a procura de respostas que acalmassem o coração e o espírito. Mas o fato é que o consolo e o conforto oferecido pelas elaboradas teorias sempre foi temporário, passageiro, provisório.
          Ela não despreza a imensa quantidade de saber acumulado, armazenado e conservado nos livros de filosofia, mas o fato é que o conhecimento que obteve levou ao desencantamento, provocado pela perda de significado do sagrado e da palavra deus. Isso causou um vazio em seu íntimo. O desencantamento, no entanto, só aparentemente tem como causa a perda de fé, pois, ela percebe que não perdeu a fé, apenas passou a acreditar em outra coisa. Se antes eram suficientes e satisfatórias as explicações dadas pela religião, agora, passou a acreditar nas explicações dadas pela filosofia assim como os cientistas tem a crença nas explicações científicas acerca do mundo. Isso quer dizer que uma explicação racional sobre o mundo e nós mesmos, seja ela filosófica ou científica, depende de um ato de fé quando é aceita como verdadeira. A diferença entre uma explicação de mundo racional e uma religiosa é que a racional tende a se resumir e não ir muito além do poder de alcance de nossos sentidos, e se mantém dentro dos limites da razão enquanto que a religiosa pode ir além, transcende os limites dos nosso sentidos e da nossa razão.
          Embora passou alguns anos da sua vida pressa as verdades religiosas não encontrou nelas nenhuma resposta satisfatória que proporcionasse um sossego a sua alma, então, passou outros tantos anos ouvindo e obedecendo a voz da razão e nem assim extinguiu da sua alma a inquietação nem seu coração foi saciado. O afã da busca provocou um vazio crescente em seu íntimo. E, assim, como o Sidarta de Hesse, começava a vislumbrar que seus mestres, aqueles sábios que haviam transmitido grande parte dos seus conhecimentos não conheciam o caminho que conduz ao sossego, a calmaria, a quietude e satisfação do espírito. Ela começa a perceber que uma grande quantidade de conhecimento foi depositada no receptáculo acolhedor que trazia em seu íntimo e, no entanto, ele (o receptáculo) não estava cheio. “O espírito continuava insatisfeito, a alma andava inquieta, o coração não se sentia saciado”. E valeria a pena prosseguir na busca?
          Não sem dor desabrocha no seu espírito a verdade daquilo que deve ser a meta da sua busca. Isso, a princípio, nada mais era do que, adquirir um conhecimento que a fizesse ser diferente e superior aos outros e, consequentemente, promovesse uma mudança no seu modo de vida, mais exatamente, uma mudança no âmbito prático, no seu ser-no-mundo, agora, porém, torna-se evidente que essa mudança não aconteceu. Ela vive assim como os outros com a diferença de que nela o peso da sua condição de ser humana e finita é maior. Ela decide prosseguir na sua peregrinação, mas não para ir a procura de um sistema filosófico diverso capaz de preencher o seu vazio existencial, nem tampouco decide prosseguir buscando uma doutrina religiosa que a satisfizesse. Enquanto andava em busca, as respostas que ela obteve, no emaranhamento das opiniões e pensamentos, não lhe serviram, assim, prossegue com o objetivo de se separar de quaisquer teorias filosóficas.
           Essa sensação de vazio que tomava conta do seu espírito, que nascera com o desencantamento, era aquilo de que desejava curar-se, mas, se o caminho não era dialogar com outros pensadores tampouco era resgatar uma velha e conhecida doutrina religiosa, que fazia parte de sua vida anterior. Não era mais possível mergulhar até o fundo de uma filosofia ou de uma religião para obter uma resposta que acalmasse o seu coração, que promovesse a satisfação e o sossego do espírito, o preenchimento interior. A primeira vista parece que o verdadeiro caminho é mudar de lugar e de ocupação. Isso, no entanto, não passa de ilusão. De nada adianta mudar o meio em que vivia e aquilo de que se ocupava, uma vez que, o vazio (pulsante, inquietante, reinante) nunca deixou de fazer parte do seu ser-aí. Não se pode esquecer que para onde se vai nosso eu é carregado junto.
          Cada dia era como o outro, e, apesar de dispersa em suas ocupações de ordem prática, ela constatou que já estava no meio-dia da vida e que uma coisa mantivera-se viva em seu espirito: a falta do sagrado. Enganou a si mesma toda vez em que, ao estar em busca, desprezou a importância do sagrado ou de deus para significar uma vida, seja ela qual fosse. O fato é que de nada adianta fazer o que se faz, ter o que se tem, se não existir o mágico, o sagrado, tudo fica sem cor, sem sabor, sem sentido. Um grande ideal poderia servir como fonte de sentido para uma existência sem deus, mas ele não pode desempenhar o papel do sagrado sem se tornar algo sagrado, divinizado. Ela perguntou a si mesma: onde encontrar o sagrado? Como ele pode voltar a fazer parte da sua existência cotidiana? Se deus era um ideal a partir do qual a sua existência fazia sentido bastaria agora criar outro ideal? Se o desassossego do coração vinha de fora, se o descontentamenteo instalado em seu íntimo tinha como causa o exterior, então, estaria ela no caminho certo ao procurar curar-se do seu vazio com aquilo que está fora de si, bastaria sacralizar algo fora de si?
          Ela cria um ideal fora de si no intuito de preencher o vazio provocado pela morte de deus. Contudo, ela que criou um ideal para significar a sua existência niilista, não consegue se ater a ele por muito tempo. Talvez os homens comuns, insatisfeitos, saltam de um objetivo a outro, de um sonho a outro, de um ideal a outro, e assim passam pela vida. Ela, no entanto, se esforçou por ter um ideal que fosse mais do que um mero sonho individual, um ideal que transcendesse a esfera do desejo e da materialidade, porém, com mais facilidade do que quando se tratava de deus, ela o abandonou. O motivo exato ela ainda desconhece. Dizem que vivemos em um mundo desencatado porque nos encontramos abandonados por deus e pelos grandes ideais. É, talvez seja isso: é o mundo em que vivemos que não nos permite manter um grande ideal.
          Descrente e desiludida, mas, segura de si, ela decidiu mudar de lugar, de país, de ocupação, enfim, o seu modo de vida e, outra vez, foi surpreendida pelo vazio, pelo tédio. Enquanto sobrevivia em um lugar distante, entre desconhecidos e lutando com as palavras (para se expressar minimamente), ela na ação meditava. Não apenas compreendeu o significado da palavra medita-ação, mas, sobretudo, reconheceu que a ausênia de sentido, estava lá exatamente onde ela se encontrava. É nesse momento que cessa a sua busca exterior e que ocorre um voltar-se sobre si mesma, para o seu interior. Já não era nenhuma novidade saber que uma verdadeira mudança deve acontecer de dentro pra fora e não de fora pra dentro. Já ouviu seu companheiro pronunciar em alto e bom tom: há quem busque fora, em todo canto e lugar por algo que lhe satisfaça, que preencha o vazio, mas mal sabem estes que não é para fora que seus olhos devem mirar, mas para dentro, pois é em seu íntimo que brota a fonte de sentido capaz de colocar significados plenos as ínfimas coisas que nos fazem companhia. Sim, isso não soava estranho, era compreensível, mas foi pronunciado ao vento. Há, na verdade, uma gigantesca diferença entre um saber o que se sabe e sentir o que se sabe. Há coisas que nos são ensinadas, mas se não são sentidas a flor da pele, continuamos a ignora-las.
          É este o caso, só agora ela apreendeu plenamente o significado do discurso alheio porque além de compreendê-lo racionalmente, o sente com aquilo que lhe permite sentir, o coração. Nada neste mundo preocupou-a tanto quanto esse vazio, essa falta de sentido que povoava seu íntimo. Conseguiu, por vezes fugir dele e furtá-lo às suas vistas, mas nunca desfazer-se. Como Sidarta, de alguma coisa ela sabe: que no que diz respeito ao íntímo, a interioridade, não se pode aprender nada. Existe sim uma sabedoria que já está em cada um de nós, que faz parte de nós e o pior inimigo dessa sabedoria é a sede de saber, a aprendizagem. Há em nós um saber que se perde na busca de conhecimento, é o saber do nosso sentir. É preciso aprender a ouvir o que sentimos, aprender a sentir o que sentimos, e, assim, teremos um grande conhecimento do mundo, do que é o sagrado. Mas, como foi interpelado Sidarta, se deixamos de aprender verdades prontas, o que restará de tudo quanto nos foi ensiando como sagrado? O que será das doutrinas religiosas, dos dogmas valiosos, das coisas sagradas que são reverenciadas pelos crentes? É nesessário desapegar-se de tudo quanto nos foi ensinado como sagrado para ver o que restará, o que sobreviverá. Se utilizamos como método a dúvida em relação àquilo que nos agarramos porque aprendemos ser sagrado, então, o que resistirá a prova? Sinceramente, ela espera que nada resista a tal prova porque só assim, vazios, sem estarem agasalhados por alguma doutrina, sem deus, podemos redescobrir o sagrado a partir de nós mesmos, da nossa interioridade. Essa descoberta interior não a conseguimos por meio de nenhuma doutrina nem é passível de ser ensinada a outrem. Outra vez ela lembrou das palavras de Sidarta: essa sabedoria interior resulta do teu próprio empenho, pelo método que é teu, pelo teu pensamento, pelo teu conhecimento, enfim, pela experiência que é própria a cada existente no mundo. A pessoa alguma poderás comunicar e revelar, inteira e completamente, por meio de palavras ou de ensinamentos o que se deu com ela mesma no momento do desvelar. As palavras apenas aproximam o outro da experiência vivida.
          Hoje, livre de toda e qualquer filosofia, sem pátria, sem casa, sem religião e ocupação, ela prazerosamente se dedica a tarefa de reaprender a ouvir o que sente. Há uma sabedoria que faz parte de nós e que racionalmente não é possível reconhecê-la. Um saber que está dentro, é sentido e nem sempre é passível de ser ensinado. Isso está lhe permitindo olhar o mundo a seu redor de um modo nunca antes visto. Sentindo percebe que o significado e a essência de cada coisa não se encontra em algum lugar atrás das coisas, senão em seu interior, no seu íntimo. Sente que apesar da multiplicidade existe, escondida, uma unidade entre tudo. Ela já não é aquela que ensina filosofia nem aquela que ora ou a ateia. Também cessou de ser, em seu interior, o nada (vazio). Tudo parece pertencer ao passado. Ela é de modo diferente do que era outrora, o seu pensar a respeito dos outros seres humanos também foi alterado. Não mais os vê como diferentes ou como estranhos, não mais os vê como seres comuns, ordinários, medíocres, dos quais desejava ser diferente ou superior. Há em seu julgamento mais cuidado, pois esses homens comuns (muito mais orientados por instintos e desejos do que por raciocínio e percepção) são iguais a ela. Apesar de ainda existir uma resistência em aceitar isso, ela faz questão de lembrar disso toda vez que julga o outro. Ela sabe (ainda precariamente) que apesar da multiplicidade das diferenças existe a igualdade.
          Cada qual anda fanaticamente correndo atrás de suas metas, cada qual sofre, é cheio de vaidade, de ambição, tem saudade e o desejo desvairado de possuir coisas, o desejo furioso de ter dinheiro e de ser admirado, é dono de angústias tolas - todas essas infantilidades das quais ela tentou se afastar são compartilhadas pelos homens, os quais se sentem sozinhos, se sentem indivíduos, porque lhes falta a percepção de que tudo está ligado a tudo e que de tudo cada um faz parte. Afinal, não padecemos nós das mesmas dores, angústias, alegrias, temores, amores? Tal repetição, como lhe ensinou Sidarta, não significa outra coisa senão a unidade e igualdade entre nós seres estranhos. Realmente é assim, tudo volta, mesmo que em outro tempo, com uma nova roupagem. É no eterno retorno do mesmo que mora a unidade existente entre as coisas. Tudo isso (a ideia de unidade e não-diferença) tem importância não porque é percebida fora dela, mas porque é um saber que brotou de dentro de si. Tem coisas que só podem ser compreendidas através da percepção interior, pois está além do alcance do racional. O todo está em tudo, tudo tem o todo em si. Não existe uma separação, tudo está interligado, tudo é o mesmo. Nada é uma só coisa senão igualmente o seu contrário. O seu íntimo diz que esse é o ponto de partida para redescobrir o sagrado. Pode parecer difícil compreender tudo isso, pois, tudo foge da razão, mas é isto que ela nomeia de verdade: algo que cresce dentro de si, que não se pode ensinar mas apenas mencionar. É somente assim que se pode ver o sagrado aí no lugar onde sempre esteve. 

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