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sexta-feira, 24 de junho de 2011

Damanhur é Pala?

DAMANHUR É PALA?!


Tatiana Palm
                                                        Ao contrário dos demais ela estava inquieta e preocupada. O objeto da sua preocupação não era outro senão ela mesma. Se questionava porque não conseguia compartilhar aquilo que presenciava e, mais ainda, seria ela tão insensível a ponto de não estar sensibilizada ou afetada por aquele significativo e sagrado ritual de que participava. Em sua fisionomia podia ser percebida uma certa desaprovação e expressão de dúvida. Sua desaprovação vem do reflexo condicionado desencadeado por esse ritual do qual ela nunca havia participado sequer ouvido falar. Talvés era por essa razão que não conseguia entender a importância e o significado mágico daquela sequência de atos conduzidos pela música, daquela palavras pronunciadas na claridade produzida pelo fogo que queimava ervas que exalavam um perfume doce. Para sua felicidade ninguém estava prestando a menor atenção aos seus gestos e expressões e nem podiam ler os seus pensamentos.
 

           Tudo aquilo, a experiência vivencida, era para ser simplesmente sentida e não explicada racionalmente. É uma experiência para ser absorvida e não imediatamente colhida e classificada ou reduzida a conceitos. Como foi educada para repetir palavras de que não entendia ou que não conhecia a razão de ser e não para o sentir, então, como podia compeender, apenas sentindo, tudo aquilo que acontecia diante dos olhos. Tudo o que podia dizer era: isso não é verdade! Isso não é real! Ela percebe que deve esquecer muitas das obcenidades que nela foram incutidas, pois, só assim é possível ter a experiência do sentir e, desse modo, compreender de maneira significativa aquilo que vivenciava em Damanhur, e, que poderia muito bem ser vivenciado em Pala. Tudo parecia ser o mesmo com a diferença de que Damanhur era real, pois, existia aí onde ela existente se encontrava. Já Pala nada mais era do que um fruto da imaginação, pois parecia não existia em nenhum lugar senão apenas na ficção de Huxley.
           E, no entanto, eis Pala em Damanhur! Não é pelo delírio que ela faz essa constatação, mas, pela comparação entre os fatos de uma realidade experenciada e as ideias que ganharam vida no papel. São inúmeras as semelhanças. A primeira delas é em relação a espiritualidade. Tanto palanese quanto damanhurianos acreditam conter em si uma parte do divino, ou seja, cada um possui uma natureza divina. O divino é parte de cada um de nós e deve ser descoberto na medida em que cada um vai se desenvolvendo enquanto humano no mundo em que compartilha com os outros e nas tarefas diárias, isso quer dizer que, a descoberta da natureza divina que pertence a cada um pode se dar tanto no momento em que trabalho em um horta quanto de pernas cruzadas e dentro de um templo na prática da meditação. A verdade é que se dá bastante importância ao que os palanese chamariam de um desenvolvimento integral e harmonioso do ser humano ocasionado como diriam os damanhurianos por meio da ação (prática) e, ao mesmo tempo, da teoria (medita). É precisamente porque a prática não é distante nem diferente ou oposta a teoria mas complementar, a medita-ação não é um ritual que ocorre apenas no isolamento e de modo contemplativo (abstrato). É possível meditar voltando-se para o próprio interior, buscando o silenciar a própria mente e encontrar a si mesmo no próprio intimo, mas, igualmente importante é meditar enquanto se trabalha e também com um grupo porque quando se olha os outros isso nos lembra quem somos e quem não somos, nos lembra o que ainda devemos melhorar no meu ser-com-os-outros. Segundo palanese ou damanhurianos, meditar é dedicar-se a descoberta de si mesmo e assim aperfeiçoar-se sempre mais na relação com os outros e sobretudo, adquirir um autoconhecimento que deve ser traduzido na prática e por meio dos próprios atos. A meditação, é uma oportunidade de crescimento interior, e, um acontecimento tanto do silêncio quanto do fazer (trabalho) que se repete todos os dias. Estar sozinho é tão importante quanto trabalhar e estar com os outros, quando se trata de meditar.

            O caso é que, se fosse apenas isso, então, a sua defesa de que Damanhur é Pala poderia sofrer sérios ataques, uma vez que, muitas são as religiões orientais que defendem o mesmo principio, a saber, o de que nada mais somos do que uma parte (pedaço de espelho) do todo (divino-espelho). E, mais do que isso, a integração entre o corpo e a mente bem como o fato da meditação não ser apenas um exercício isolado e contemplativo. Assim sendo, é preciso apresentar um argumento mais forte que aproxime Damanhur de Pala. Ei-lo: Pala é uma Federação de unidades autogovernadas: unidades geográficas, profissionais e econômicas., que dá oportunidade para a iniciativa em pequena escala. Uma Federação onde se trabalha no sistema cooperativo. É nesse sistema que compram, vendem, financiam e dividem os lucros. Esses sistema possui uma moeda própria, mas não bancos em estilo ocidental, nem pessoas com uma fortuna. E por acaso não é exatamente isso que funciona em Damanhur? Essa comunidade se autonomeia uma Federação e possui unidades autogovernadas, os núcleos familiares, que tem o desafio de serem economicamente autosuficientes ainda que cada membro do núcleo tenha que desempenhar funções fora dele. Há oportunidades para a iniciativa em pequena escala porque cada núcleo (unidade) que forma o corpo (todo) é desafiada a apresentar novidades (no que diz respeito a sua organização, a sua economia, etc.) que beneficie a si mesma e igualmente o todo (comunidade).

Considerando o fato de que a medida que a população cresce a prosperidade decresce, então, além dos cuidados econômicos há também uma cuidado com a natalidade. Assim como em Pala, observa-se que a comunidade damanhuriana não produz mais crianças do que aquelas que podem alimentar, vestir, abrigar, e transformar em seres humanos completos. Curioso é o fato de que isso faz parte da consciência de cada elemento do todo e não é algo a que eles foram obrigados ou algo de que devem ser lembrados constantemente. O fato de existir uma número pequeno de crianças em Damanhur é reconhecido com bastante naturalidade.
           Como existem crianças, então, são necessárias as escolas. Quando se trata de educação o povo damanhuriano se diferencia um pouco do povo palanes, pois, ali não há uma preocupação em oferecer uma educação diversa daquela que ocorre fora dos limites de Damanhur. Enquanto que em Pala a educação se preocupa em se diferenciar daquela que existe fora da ilha, aquela a que pertence a uma sociedade normal, do trabalho ingrato, da carreira profissional acima de tudo. É por isso que se ensina acima de tudo as ciências da vida e da mente e não tanto a física e química, é por isso que a preocupação maior é com fisiologia, psicologia, botânica e não tanto em confrontar ao mundo exterior seus valores e conhecimentos. Já em Damanhur a educação escolar se integra perfeitamente àquela exterior a comunidade, porém, não deixa de se preocupar com uma formação total do individuo. Isso ocorre mediante o conflito de diferentes pontos de vista, com uma relação direta com a vida prática, pelos estímulos que vem da família, convivência e pela escola mesmo na medida em que proporciona aos seus alunos a experiência da itinerança escolástica, isto é, um aprendizado que se dá por meio de viagens temáticas (por exemplo, ao se estudar os romanos, viaja-se até Roma) e experiência de convivência em grupo, o que permite o aprendizado de uma forma dinâmica e prática (por experiência). Não apenas o mundo se torna escola, uma vez que, nele existe o confronto com questões escolástica e de ordem prática (como por exemplo, com o consumismo do mercado e a perda de valores) senão também o comportamento dos educadores, dos pais, enfim, dos adultos é uma aula, pois aqui eles possuem a base dos seus valores. Em outras palavras, a educação se faz pela vida e também diretamente por exemplos. Considerando que os filhos aprendem dos adultos por imitação, então, a preocupação dos damanhurianos é transmitir, por meio do seu comportamento, os seus valores positivos e, sobretudo, buscar a transformação que aperfeiçoa a si mesmo, em seu percurso de crescimento interior. Como a educação se dá pela vida, então, fica garantido o desenvolvimento de um pensamento autônomo e aberto aos confrontos da vida, o que é útil para cada um atingir e desenvolver os seus talentos individuais. Ela percebe, então, que ambas as comunidades se preocupam em oferecer uma boa escola. Por que? Para que crianças e jovens tenham sucesso, mas não sucesso no sentido de que sejam aptos a arranjar empregos ou na obediência às imposições locais. O desejo é que se desenvolvam harmoniosamente a fim de que conheçam a unidade que existe entre eles e todos os outros seres ou, nas palavras damanhurianas, a fim de que reconheçam que a vida se exprime através de uma multiplicidade de formas presentes no universo (animal, vegetal, mineral humana) e se transformem em adultos plenamente realizados. O currículo escolar não inclui o ensino de nenhum credo pois, tanto em Damanhur quanto em Pala, não há uma religião estabelecida. O que existe é uma espiritualidade que, em Damanhur, consiste em dedicar-se a descoberta das diversas realidades (formas de vida), “fazendo de cada encontro uma ocasião de crescimento íntimo … por isso, é importante trabalhar, estar com os outros, estudar, educar os filhos, pois cada uma destas atividades permite encontrar e descobrir realidade diversas”. Em síntese, a espiritualidade “é uma escolha de vida que se repete cada dia e que deve, sobretudo, ser traduzida em atos.”
           É claro que ela não pode, para finalizar, deixar de destacar outras semelhanças entre palaneses e damanhurianos no que diz respeito a compreensão do trabalho, a manipulação do tempo, a dança e a pintura. A compreensão que ambas as comunidades tem do trabalho difere daquela visão ocidental de que quanto mais especializado em uma área maior é o sucesso de um indivíduo. Não! Em primeiro lugar, faz parte da educação de palanese e damanhurianos experiementar vários tipos de trabalho, ainda que estejam comprometidos com um tarefa específica. Não basta desenvolver diversas espécies de trabalho, mas é preciso ter plena consciência daquilo que se está fazendo e sentindo e isso no que diz respeito a tudo. É essencial uma vigilância, um estar cônscios daquilo que fazemos e sentimos, assim, o trabalho se torna “a ioga do trabalho”, a diversão passa a ser a “ioga da diversão“, o ato de amor transfigurado pela consciência passa a representar a “ioga do amor”. Em relação ao tempo o Damanhurianos acreditam ter o poder de realizar viagens no tempo, isto é, voltar no tempo, a outras civilizações como, por exemplo, a Atlântida, a cidade desaparecida. Esse retorno ao tempo lhes permite obter conhecimentos avançados para serem aplicados na sua própria comunidade. Como ocorrem essa viagens, se por meio de transe ou não, ela não sabe porque infelizmente não teve tempo de te aprofundar nesse assunto. Já em Pala também existe a possibilidade de alteração do tempo. Os palanese não falam em viagem no tempo, mas sim em alterar o tempo real. Através de um transe profundo se ensina a “condensar” o tempo, reduzindo-o a um trigésimo da sua duração normal, assim, se sente vinte segundos como se fossem dez minutos e um minuto como se fosse meia hora. Isso permite resolver um problema, que consumiria uma hora de trabalho em poucos minutos e, mais, sem que se tenha consciência de qualquer esforço extraordinário e sem a noção de que se está fazendo as coisas apressadamente. Eis, então, a proximidade entre palanese e damanhurianos quando se trata de controlar o tempo.

           Em relação a arte vemos que para ambas as comunidades a dança é uma arte séria, pois, além de dar uma nova direção as forças másculas dos maus sentimentos, ela expressa os bons sentimentos e as palavras. A dança sacra, em Damanhur, representa a metafísica expressa não em palavras mas em gestos, em movimentos simbólicos. A dança rakshasi, (Rakshasi é uma espécie de demônio que personifica as paixões mais pavorosas) em Pala, é um artifício usado para descarregar a energia acumulada pela ira e pelas frustrações. Ambas as comunidades se utilizam de movimentos energéticos e de gesticulação expressiva, feita por gestos e pelo corpo. O ritual de movimentos estilizados dá corpo ou forma aos pensamentos e sentimentos bem como ao que é sagrado. Por fim, percebemos que além da dança em ambas as comunidades é importante a pintura. Se compartilha da crença de que as pessoas inteiramente comuns são capazes de ter visões e sentimentos que podem ser expressados em uma pintura. As imagens criadas pelos artistas não são melhores do que as produzidas pelos artistas do mundo. Isso quer dizer que a arte pode ser executada por qualquer um, uma vez que, o que é transposto em uma tela está relacionada com aquilo que se sente e que se teve a oportunidade de ver. O que significa uma pintura? Para os palanese os quadros são o que são. São a projeção da mente de cada um e, ao mesmo tempo, da mente de todos. No jogo das cores e das formas, ainda que abstratas, todos podem encontrar neles uma expressão simbólica dos seus próprios temores, ódio, sonhos, luxúria, etc. Diante de uma quadro e por meio das realidades que ele revela, é possível se ter o autoconhecimento e, além disso, retirar dele a meditação. Na contemplação de um quadro podemos nos lembrar, todos, quem somos e quem não somos. E, por isso, em Damanhur, um quadro aparentemente insignificante para uns, em seu um conjunto de cores ofuscante e formas disformes, pode ter um grande valor pessoal. Na verdade, as pessoas buscam encontrar o seu quadro e, ao identifica-lo, o usavam tanto para a meditação quanto para abrir as “portas da percepção” ao conhecimento que vem de fora deles mesmos.

           Como ela pode perceber inúmeras são as semelhanças entre a ilha Pala e a comunidade de Damanhur, são tantas que fica convencida da real influência de Huxley (o criador da ilha) sobre Falco (o fundador de Damanhur). O que permanece obscuro e duvidoso é o que se refere aos “reveladores da realidade”, aquilo que nos permite ter uma percepção mais intensa da realidade, aquilo que nos abre os olhos para ver o que sempre esteve aí, mas que jamais foi visto, aquilo que nos proporciona uma alegria e um prazer ainda mais cheio de compreensão, de modo que os acontecimentos triviais e as coisas mais simples sejam sentidos e vividos como milagres. A meditação, o jejum, a oração (por exemplo, mantras indianos) são meios que levam a um estado alterado de consciência que proporcionam uma experiência mística. Essa experiência mesmo que não se refira a nada exterior, ainda assim, é a coisa mais importante que pode nos acontecer. Ela gera um profundo sentimento de conexão com todas as coisas e a todas as pessoas, inclusive aquelas que não fazem parte do nosso meio; passa-se a perceber a si mesmo como uma parte conectada e importante de tudo o que existe. Uma experiência mística pode dissolver sentimentos negativamente acumulados, agregar amor, paz, comunhão e ainda abrir os olhos e transformar a vida das pessoas. Em Pala, uma experiência mística, é prorpocionada pelo Moksha. E em Damanhur? Existe um moksha damanhuriano que nos sensibilize a ver a unidade contraíndo núpcias com a pluralidade? A encontrar o nirvana ou a iluminação? A ver a síntese (unidade) das antíteses? A sentir gratidão por ter uma natureza divina e, ao mesmo tempo, ser uma criatura finita entre outras também finita?

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