Considerações sobre
o
Cuidado
de si
Luciano Palm

O ritmo frenético da vida
contemporânea, o acúmulo cada vez maior de tarefas e atividades, associado as inevitáveis
preocupações do dia a dia, conduzem a uma situação psicológica e física
doentias. Os afazeres cotidianos induzem a um constante esquecimento de si mesmo, isto é, em nosso cotidiano esquecemos que
somos seres autônomos, críticos e criativos na medida em que somos consumidos
pelas atividades diárias (que em geral, nos são impostas, isto é, não são o
resultado de um escolha própria, consciente e autônoma). Além disso, nosso modus vivendi contemporâneo não favorece
a realização de uma reflexão sobre si, ou seja, não permite que sejamos autores
conscientes daquilo que somos, fazemos e queremos. Em nosso cotidiano somos
levados constantemente a assumir determinados “papéis” sociais, as personas (máscaras) latinas[2]
(o professor, o médico, o mecânico, o empresário, etc.). Não estou dizendo que
não seja possível ser autônomo e criativo enquanto professor, médico ou
mecânico; estou dizendo apenas que enquanto estamos desempenhando nossas
atividades cotidianas, estamos lidando sempre com questões externas e colocamos
nós mesmos em segundo plano. Desse modo, a maioria das pessoas atualmente vivem
sobrecarregadas por inúmeras tarefas e atividades que não possuem um sentido
pessoal (íntimo) efetivo, forte e real, resultando numa vida vazia e marcada
pelo desprazer e pela insatisfação. É por isso que é comum vermos grande parte
da população reclamando de quase tudo (trabalham no que não gostam, não se
esforçam para manter uma relação amorosa prazerosa, não cuidam da própria
saúde, não se interessam por cultura e informação e estão sempre muito mais
propensos a rosnar do que a aprender). Outro sintoma bastante significativo da
falta do cuidado de si contemporânea (que não pode ser ignorado) é o verdadeiro exército de pessoas acometidas por
doenças mentais em nossa sociedade, além, é claro, da eclosão de diversos casos
de câncer e outras doenças que estão associadas em grande medida a hábitos e
costumes equivocados, ou seja, a falta do cuidado
de si.

Neste sentido, podemos dizer que o
que falta ao homem contemporâneo é desenvolver uma atitude de cuidado em relação a si e ao mundo, já
que é desta atitude que depende inclusive a possibilidade de futuro para as próximas gerações. Mas de onde vem a noção do cuidado
de si que utilizamos como fundamento para esta reflexão? Esta noção
aparece como tema das aulas do filósofo francês Michel Foucault no ano 1981-82
no Collège de France, estas aulas, por sua vez, foram transcritas e reunidas no
livro A Hermenêutica do Sujeito. Segundo Foucault, a questão do cuidado de si mesmo surgiu no momento em
que ele investigava a relação entre sujeito
e verdade na Antiguidade, lembremos
que tal questão culminará no problema moderno entre teoria e práxis (e no risco
de a filosofia e as ciências tornarem-se discursos vazios, descolados da
realidade e da vida). O foco inicial de Foucault era investigar a noção
socrática do conhece-te a ti mesmo que
ele suspeitava ser o fundamento da
relação sujeito e verdade. Contudo, o filósofo acabou verificando que o
conceito socrático consistia num antigo preceito do mais famoso templo da
Grécia Antiga, o templo de Delfos (cuja influência vai do séc. VIII a.C. até o
séc. IV d.C.)
As inscrições presentes no templo de
Delfos influenciaram essencialmente a formação das relações éticas, políticas e
pessoais do homem grego diante de si mesmo e com o mundo. Tais inscrições
consistiam em preceitos, ou seja, regras ou mandamentos gerais que visavam
desenvolver uma determinada atitude ou postura do ser humano diante do mundo e
de si mesmo. Os preceitos tiveram larga influência na formação do homem na
Antiguidade, com conseqüências também no mundo medieval e moderno.
Em outras palavras, os preceitos
de Delfos serviam essencialmente como princípios
orientadores da ação, e é enquanto tal (enquanto princípios orientadores da ação), que pretendemos abordá-los a fim
de apresentar alguns caminhos que nos levem a repensar e avaliar nosso atual
modo de viver e a nossa relação com o mundo, com os outros e conosco mesmos.
Antes de abordarmos diretamente o cuidado
de si, devemos pensar nas condições necessárias para que tal cuidado possa
ocorrer. Neste sentido, se somos levados ao esquecimento
de si por nossa constante ligação com questões externas e impessoais, a
condição mais fundamental, tanto do cuidado
de si quanto do conhecimento, é o ócio. Em geral, em português a palavra
latina otium (da qual deriva ócio) é
traduzida como tempo livre. E por tempo livre, tende-se a pensar aquele momento de não
se fazer absolutamente nada, ou como o momento de se usufruir de certos prazeres fugazes.
No entanto, o ócio encontra-se
intimamente ligado ao conceito de formação para os gregos (lembremos que da palavra scholè/skolè (ócio em grego) derivam as palavras escola em português, assim como school em inglês), assim, o ócio é
compreendido como momento de cultivar-se, de preparar-se, de ocupar-se consigo
mesmo com o objetivo de se formar e de se aperfeiçoar para melhor enfrentar as
situações que se apresentam ao longo da vida.

Desse modo, para cuidar de si é necessário inicialmente
tempo livre, isto é, não estar ocupado com qualquer questão externa. Mas restam
ainda outras questões que devem ser abordadas, como por exemplo: O que é cuidar de si?; Quem é esse si (ou seja, esse eu) com o qual devo ter cuidado?; E quando devemos cuidar de nós mesmos? Assim como em
relação a clássica questão sobre o tempo, todos nós, a priori, já sabemos o que significa ter cuidado, mas quando nos
colocamos na tarefa de responder a tais questões nos vemos diante de invitáveis
embaraços. No entanto, podemos apresentar uma definição geral do cuidado de si mesmo, dizendo que ele
consiste numa atitude de preocupação de si para consigo mesmo e com suas
faculdades, consiste na atitude de ocupar-se consigo mesmo na intenção
aperfeiçoar cada vez mais nossas faculdades e aptidões, em outras palavras, o cuidado de si mesmo consiste em um
conjunto de práticas e exercícios que visam realizar aquilo que na Antiguidade
era a finalidade da vida humana, isto é, a felicidade.

O eu com o qual devo me ocupar, inicialmente não é certamente o
professor, o advogado, etc. (ou seja, com os papéis sociais), mas com aquela estrutura mais fundamental,
o sujeito de (aquela estrutura mais
íntima que é inclusive condição para que eu assuma qualquer persona). Em relação a pergunta sobre o
momento em que devemos cuidar de nós mesmos há controvérsias entre os antigos.
Alguns consideravam a juventude como um momento privilegiado do cuidado de si, por ser um momento de
preparação do jovem para a vida. Outros consideravam a velhice como o momento
mais adequado do cuidado de si,
porque neste momento o ser humano já possui mais experiência, sabedoria e tempo
livre (ócio) para dedicar-se a si mesmo. Porém, a maioria dos autores que
abordaram a questão do cuidado de si
mesmo, considera que é imprescindível que durante toda a sua vida o ser
humano pratique o cuidado de si.
Voltemos agora ao significado dos
preceitos délficos a fim de tornar mais clara a noção do cuidado de si mesmo enquanto uma prática dedicada a edificação da
vida e da felicidade humana. Neste sentido, o cuidado de si mesmo era o preceito mais geral que englobava, por
sua vez, outros três preceitos que formavam as chamadas práticas ou exercícios do
cuidado de si. O primeiro destes
preceitos subordinados dizia: nada em demasia, este preceito está
ligado a formação do caráter em relação à virtude (temperança), neste sentido, cuidar de si significa ser comedido
(desde a dietética alimentar e sexual,
até as relações pessoais) e respeitar os nossos limites, todo excesso e toda
falta conduzem ao vício e ao adoecimento. O segundo preceito, devido a
interpretação filosófica de Sócrates, acabou se tornando o mais famoso: conhece-te
a ti mesmo, antes da
autoconsciência filosófica, tal preceito possuía um sentido muito mais ligado a
dimensão ética e representava a necessidade de voltar o olhar para si mesmo e
analisar as próprias ações e palavras antes de efetuar qualquer julgamento.
Neste sentido, cuidar de si significa
ter consciência de suas próprias ações e de si mesmo enquanto sujeito responsável
por elas. Enfim, o terceiro preceito ligado as práticas do cuidado de si dizia assim: o comprometimento enobrece (entristece),
a ambigüidade relativa à última palavra do preceito está presente já no original
grego e é interessante quanto ao significado do preceito. Pois, estando tal
preceito relacionado a projeção do futuro e da necessidade de se ter consciência
da responsabilidade das escolhas efetuadas no presente, ele consiste em saber
que escolher entre diversas possibilidades implica em comprometer-se com elas e
que tais comprometimentos serão responsáveis por nosso sucesso ou fracasso, por
nossa felicidade ou infelicidade futuras, ou seja, por nosso enobrecimento ou entristecimento.

Desse modo, cuidar de si mesmo na Antiguidade significa: 1) Estar consciente de
nossas limitações e respeitá-las; 2) Conhecer a si mesmo para melhor viver a
sua vida e evitar julgamentos precipitados, e; 3) Fazer escolhas acertadas no
presente a fim de evitar frustrações futuras. Além destas práticas do cuidado de si, temos ainda outras,
introduzidas sobretudo por Sêneca e Epicuro. Duas delas, acredito que
seja significativo mencionarmos: 1) os cuidados em relação a morte, e; 2) as conversatio. Os cuidados em relação a
morte implicavam no compromisso de cada ser humano viver todos os dias de sua
vida como se fosse o último (Carpe Diem), assim, cada esforço e cada ação, seriam bem pensadas,
pois, afinal, nenhum desperdício pode ser admitido nesta rápida corrida para a
morte que é a vida humana. Além deste exercício, havia ainda outro, ao qual os
romanos chamavam de conversatio. As conversatio consistiam em, no final de
cada dia, elaborar um discurso verdadeiro e reflexivo a respeito de si e de seu dia, tal
exercício tinha a finalidade de diagnosticar os aspectos positivos e negativos
vivenciados naquele dia, na intenção de progredir em relação aquilo que se é.
Enquanto prática do cuidado de si, a conversatio consistia em um discurso
elaborado de si para si, sempre na intenção de um aperfeiçoamento moral,
intelectual, emocional e físico. No entanto, no Cristianismo tal prática dará
origem a confissão, ou seja, um discurso verdadeiro (mas agora, pronunciado
para outro (o sacerdote) e com forte apelo a culpa e a vergonha, que não estavam
presentes no cuidado de si grego e
romano).
Por último, se depois desta
rápida reflexão sobre o cuidado de si
na Antiguidade pudéssemos pensar os preceitos de Delfos como princípios
orientadores da vida humana contemporânea, certamente a humanidade não se veria
livre de todos os males e preocupações que a afligem, mas ao menos, poderia
estar mais segura e esclarecida a respeito dos caminhos a seguir e das posturas
que nós, seres humanos, devemos assumir diante do mundo, dos outros e de nós
mesmos. Pois, filosoficamente a prática dos exercícios do cuidado de si tinham um objetivo bem definido, transformar o
discurso racional verdadeiro em práxis objetiva, isto é, utilizar o conhecimento
como propulsor para a edificação e aperfeiçoamento do homem e do mundo. Assim,
fazer da filosofia e da ciência um discurso vivo e vivificante é a finalidade
última do cuidado de si,
desprendê-las da vida significa transformá-las, tanto a filosofia quanto a
ciência, em um discurso vazio e estéril.

Evidentemente o contexto atual é
profundamente distinto em relação ao da Antiguidade. E não podemos simplesmente
aplicar noções válidas para aquele período ao nosso. Mas é certo que nutrir uma
atitude de cuidado (em relação a si,
aos outros e ao mundo) pode colaborar de forma positiva na construção de uma
nova realidade, uma realidade em que as questões humanas (e não as econômicas e
materiais) estejam em primeiro plano. Desse modo, podemos não conseguir
resolver os grandes problemas e dilemas da humanidade, mas teremos consciência
de que a solução de tais problemas e dilemas requer, e começa, com o cuidado (e a transformação) de si mesmo.
Para
finalizar:

Trecho declamado no final da
música “Samba da benção” de Vinícius de Moraes:
...
Pois é companheiro, a vida não é brincadeira não, embora haja tanta gente por
aí brincando com a vida. A vida é coisa séria. E não se engane não, tem uma só.
Duas mesmo que é bom, ninguém vai me dizer que tem sem antes provar, muito bem
provado, com certidão passada em cartório do céu e assinado em baixo: Deus. E
com firma reconhecida. Pois é companheiro, a vida é a arte do encontro, embora
haja tanto desencontro pela vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário