Universo Paralelo
Luciano Palm
Vários dos problemas das sociedades contemporâneas, especialemte os problemas de saúde e segurança, estão relacionados a questão das "drogas", especialmente com o tráfico e com a "indústria" que se formou em torno do comércio de tais substâncias. A relação do ser humano com substâncias psicoativas remonta de longa data e, na maioria dos casos, estava associada a ritos e experiências místicas ou religiosas.

Quando na Grécia Antiga (tradicional produtora de uvas) eram celebradas festas nas ocasiões de colheitas das safras de cada ano (as famosas dionisíacas, festas em homenagem aos deus mitológico Dionísio, deus da uva, do vinho, da poesia, da música , da arte e do espírito criativo; incorporado na cultura romana como Baco, em que eram celebradas as bacanais), imaginava-se que o comportamento dos indivíduos após o consumo do suco de uva (guardado da safra anterior) era resultado da ação dos poderes de Dionísio sobre eles. Apenas mais tarde desenvolveu-se o conhecimento acerca da fermentação do suco da uva e de sua mutação em uma substância alcóolica, o vinho, atribuindo-se a partir de então como causa do comportamento alterado a embriaguês e não a forças sobrenaturais que estariam atuando neste momento.
Mesmo após a descoberta das propriedades alcóolicas da fermentação do suco de uva, o vinho continuou presente em rituais religiosos pagãos e também no Cristianismo, em que é associado ao sangue de Cristo no ritual da comunhão.

Processo similar ocorre com diversas outras substâncias como, por exemplo: o tabaco, a cannabis sativa (popularmente conhecida de diversas formas: maconha, beck, ganja, maria joana, "santa maria"...), a coca, o ópio e o haxixe. Todas estas substâncias estão profundamente enraizadas nas culturas de diversos povos e civilizações; ou como elementos de rituais religiosos ou como substâncias auxiliadoras na adaptação da vida humana as condições do meio ambiente. Destas substâncias, o consumo das folhas de coca, é a única que não está originalmente vinculada a um contexto místico-religioso, já que tem o seu consumo relacionado a propriedades medicianais utilizadas por antigos povos indígenas americanos que se aventuraram a viver em altitudes extremas. Nestas comunidades e civilizações, as folhas de coca foram fundamentais para a adaptação dos organismos a tais condições (a coca é um poderoso estimulante que contribui para a maior oxigenação dos organismos em ambientes rarefeitos). Todas as demais substâncias estão originalmente associadas a contextos de experiências místico-religiosas.

O consumo do ópio e do haxixe forma amplamente difundidos em diversas culturas orientais, em que são interpretados conectores que acessam os portais que ligam os ser humano com o divino. Ainda hoje, em grande parte das sociedades islâmicas, em que o álcool é expressamente proibido, o consumo de ópio e de haxixe são permitidos e respaldados cultural- e legalmente em diversos países.
Em relação ao tabaco e a cannabis e seu processo de assimilação e incorporação cultural e legal se dá de maneira diversa. Originalmente, entre as civilizações indígenas da América, estas duas plantas estão associadas as forças elementais do masculino (tabaco) e do feminino (cannabis) no reino vegetal. Nestas culturas, enquanto o tabaco está relacionado com o vínculo do ser humano com a terra e com a matéria, a cannabis, por sua vez, estava associada com a vinculação com a realidade espiritual superior, com o sentido de plenitude e integração do ser humano com a totalidade que o circunda. Embora o consumo de tais substâncias fosse incorporado no cotidiano destas civilizações, as circunstâncias e ocasiões do seu consumo eram precisamente orientadas pelo xamã da tribo (autoridade espiritual).
Neste sentido, em seus contextos originais, nenhuma destas substâncias pode ser interpretada como um perigo ou um problema social. Porém, fora de seus contextos, elas podem ser desvirtuadas e "prostituídas" de diversas formas, a ponto de configurarem e desencadearem problemas de diversas ordens; agem como corpos estranhos que, assim como as células cancerígenas em um organismo, desencadeiam diversas patologias.
Dentre todas, a maior injustiça cultural, social, moral e jurídica converge, sem dúvida, contra a cannabis. No processo de aculturação e hibridização da cultura européia com as culturas dos povos indígenas da América, após as Grandes Navegações, o tabaco foi assimilado tranquilamente e inclusive associado posteriormente com glamour e poder. Enquanto que a cannabis foi rechaçada cultural e legalmente taxada como "cigarro de índio e negro", associada com algo inferior e desprezível. É claro que, segundo a ótica dos europeus colonizadores, as propriedades estimulantes do tabaco eram condizentes ao seu projeto colonizador que visava incorporar a força produtiva, inicialmente dos indígenas e posteriormente dos negros contrabandiados da África, a suas iniciativas produtivas e rentáveis; por outro lado, as propriedades introspectivas e espirituais da cannabis tinham que ser banidas e reprimidas como um mal a ser estirpado do habitus social.
Contudo, com o desenvolvimento da chamada civilização ocidental, com seus inúmeros desdobramentos, sobretudo sua formatação pós-Revolução Industrial, concentrada nos centros urbanos, organizados em torno das fábricas (núcleo da economia moderna e contemporânea, incluindo suas versões virtuais, incorporados na História recente); a relação humana com tais substâncias se tornou problemática. O tabaco foi transformado em cafetão da nicotina pela indústria tabagista, pois, como disse ocasionalmente um acionista de uma das maiores indústrias do setor: "_ Nosso produto não é o tabaco, mas a nicotina, o tabaco é apenas um meio para oferecer a nicotina." Por este motivo, os Ministérios da Saúde de diversos países limitaram as quantias de nicotina que a indústria tabagista poderiam agregar aos seus produtos. É claro, fumantes compulsivos submetem-se melhor a regras prestabelecidas, aumentam sua capacidade de concentração e produtividade imediata, o que é perfeito para a indústria e para o sistema; mas para os indivíduos (as existências esquecidas e condenadas) ninguém jamais saberá. A cannabis, por sua vez, dama de voos mais sutis, pela introspecção, pelo autoconhecimento que posssibilita, pelo aguçamento dos sentidos, pela expansão da consciência, foi historicamente rechaçada e discriminada (além de ser "prostituída" pelo tráfico). Atualmente, autoridades relevantes, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com seu perspicaz olhar sociológico (aguçado por sua experiência como presidente da República), tem levantado a questão a respeito de equívocos estratégicos em relação a segurança pública e o efetivo risco social de algumas substâncias, sobretudo da cannabis.
Os problemas sociais em relação às "drogas" começam sobretudo a partir da sua manipulação em laboratório (com a produção das chamadas drogas químicas e sintéticas). A popularização das "drogas" é impulsionada quando tais substâncias passaram a ser usadas como instrumento de guerra, sobretudo na Guerra do Vietnã, quando grandes quantidades de cocaína foram distribuídas entre os soldados americanos, para "otimizar" suas habilidades (disposição física, atenção e agressividade); além de grande quantidade de cannabis (fornecida como anestésico, para que os soldados conseguissem suportar e lidar da melhor maneira possível com as dores e traumas de uma guerra, e para que eles pudessem aliviar a tensão física e emocional, ao menos por alguns instantes).
No mesmo período, também nos Estados Unidos foi sintetizado o ácido lisérgico (LSD, popularmente conhecido como "doce"), que segundo seus criadores possibilitava experiências em outros estados ou dimensões da consciência, favorecendo a expansão de sua atividade. De outro lado, inspirado nos ideais pacifistas de "paz e amor", e empenhados na transformação e expansão da consciência em busca de uma nova compreensão e visão de mundo, o Movimento Hippie incorpora, principalmente o consumo do LSD e da Cannabis, como substâncias facilitadoras na realização de seu projeto transformador. Sem dúvida, a Guerra do Vietnã e o Movimento Hippie, tem papel fundamental na divulgação e na globalização do consumo de substâncias psicoativas em larga escala, cada qual com seus propósitos específicos e particulares.
Apenas mais recentemente, entraram em cena algumas outras drogas sintéticas, como o ectstasy (popularmente conhecido como "bala"), incorporados e difundidos pelos movimentos PSY que, embalados pela música eletrônica, objetivam o transe sensorial conectivo e a expansão da consciência. Além dos derivados da cocaína, como o crack (popularmente conhecido como "pedra") e o oxxy, que objetivam o aumento e a otimização dos lucros da "indústria" do narco-tráfico (às custas de milhares de vidas que escoam diariamente pelos ralos da história).
A heroína, por sua vez, embora não tenha atingido tanta populariedade quanto as outras substâncias, foi sintetizada a partir dos princípios ativos do ópio e teve seu consumo difundido a partir das décadas de 70, 80 e 90 por artistas e grupos (tribos) urbanas, sobretudo nos EUA e na Europa.
Desse modo, a partir deste rápido e precário histórico das "drogas", podemos refletir que a intervenção legal e institucional em relação a sua proibição é razoável e justificável, em muitos casos, devido aos efeitos danosos e prejudiciais (individuais e sociais) de tais substâncias. Jamais poderíamos, em sã consciência, concordar que a legalização de substâncias como a cocaína, a heroína, o crack e o oxxy poderiam representar um bem para a sociedade ou para os indivíduos, dado os efeitos destrutivos e as características anti-sociais desencadeadas por estas substâncias. Situação muito diversa ocorre com a cannabis, seus efeitos não impedem, nem limitam uma sociabilidade saudável, nem comprometem o desempenho das atividades individuais, profissionais e pessoais (evidentemente desde que consumida em quantidades equilibradas e razoáveis). Sendo assim, nada além de impedimentos e preconceitos morais e culturais, justificam o fato de a cannabis ainda ser colocada no mesmo patamar de substâncias altamente destrutivas (como o consumo abusivo de bebidas alcoólicas por exemplo). Então, o diálogo e a discussão em torno de sua legalização é extremamente pertinente e oportuna.
Falando clara e francamente, os problemas sociais (de saúde e segurança pública) estão diretamente relacionados com o narco-tráfico e seus interesses comerciais escusos, incentivados e estimulados pela ignorância e pela estupidez humana, pela falência e pelo colapso da maioria das instituições, ideais e valores humanos. Bom-senso, juízo, criatividade e consciência devem ser as palavras de ordem na construção de uma cultura de paz e respeito mútuo planetária. Em que todas as questões humanas sejam discutidas sem nenhum resquício de ódio, sem nenhum resquício de culpa, sem nenhum resquício de preconceitos (culturais, morais ou espirituais); mas com todos os resquícios de amor fraterno, justiça, compreensão e respeito por toda a mágica diversidade que constitui a constelação da teia da vida.
P.S.: Neste texto não dialogamos sobre o consumo, abuso e os efeitos danosos do consumo de bebidas alcoólicas, que talvez hoje, represente o maior problema, tanto individual quanto social (de saúde e de segurança).
Dentre todas, a maior injustiça cultural, social, moral e jurídica converge, sem dúvida, contra a cannabis. No processo de aculturação e hibridização da cultura européia com as culturas dos povos indígenas da América, após as Grandes Navegações, o tabaco foi assimilado tranquilamente e inclusive associado posteriormente com glamour e poder. Enquanto que a cannabis foi rechaçada cultural e legalmente taxada como "cigarro de índio e negro", associada com algo inferior e desprezível. É claro que, segundo a ótica dos europeus colonizadores, as propriedades estimulantes do tabaco eram condizentes ao seu projeto colonizador que visava incorporar a força produtiva, inicialmente dos indígenas e posteriormente dos negros contrabandiados da África, a suas iniciativas produtivas e rentáveis; por outro lado, as propriedades introspectivas e espirituais da cannabis tinham que ser banidas e reprimidas como um mal a ser estirpado do habitus social.

Os problemas sociais em relação às "drogas" começam sobretudo a partir da sua manipulação em laboratório (com a produção das chamadas drogas químicas e sintéticas). A popularização das "drogas" é impulsionada quando tais substâncias passaram a ser usadas como instrumento de guerra, sobretudo na Guerra do Vietnã, quando grandes quantidades de cocaína foram distribuídas entre os soldados americanos, para "otimizar" suas habilidades (disposição física, atenção e agressividade); além de grande quantidade de cannabis (fornecida como anestésico, para que os soldados conseguissem suportar e lidar da melhor maneira possível com as dores e traumas de uma guerra, e para que eles pudessem aliviar a tensão física e emocional, ao menos por alguns instantes).



Desse modo, a partir deste rápido e precário histórico das "drogas", podemos refletir que a intervenção legal e institucional em relação a sua proibição é razoável e justificável, em muitos casos, devido aos efeitos danosos e prejudiciais (individuais e sociais) de tais substâncias. Jamais poderíamos, em sã consciência, concordar que a legalização de substâncias como a cocaína, a heroína, o crack e o oxxy poderiam representar um bem para a sociedade ou para os indivíduos, dado os efeitos destrutivos e as características anti-sociais desencadeadas por estas substâncias. Situação muito diversa ocorre com a cannabis, seus efeitos não impedem, nem limitam uma sociabilidade saudável, nem comprometem o desempenho das atividades individuais, profissionais e pessoais (evidentemente desde que consumida em quantidades equilibradas e razoáveis). Sendo assim, nada além de impedimentos e preconceitos morais e culturais, justificam o fato de a cannabis ainda ser colocada no mesmo patamar de substâncias altamente destrutivas (como o consumo abusivo de bebidas alcoólicas por exemplo). Então, o diálogo e a discussão em torno de sua legalização é extremamente pertinente e oportuna.


P.S.: Neste texto não dialogamos sobre o consumo, abuso e os efeitos danosos do consumo de bebidas alcoólicas, que talvez hoje, represente o maior problema, tanto individual quanto social (de saúde e de segurança).
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