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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Todos somos um

Do cogito ao holismo
Tatiana Palm


 
           “A exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a das mulheres, que tem sido identificadas com a natureza ao longo dos tempos. Desde as mais remotas épocas, a natureza – e especialmente a terra – tem sido vista como uma nutriente e benévola mãe, mas também como uma fêmea selvagem e incontrolável. Em eras pré-patriarcais, seus numerosos aspectos foram identificados com as múltiplas manifestações da deusa. Sob o patriarcado, a imagem benigna da natureza converteu-se numa imagem de passividade, ao passo que a visão da natureza como selvagem e perigosa deu origem à ideia de que ela tinha de ser dominada pelo homem. Ao mesmo tempo, as mulheres foram retratadas como passivas e subservientes ao homem. Com o surgimento da ciência newtoniana, finalmente, a natureza tornou-se um sistema mecânico que podia ser manipulado e explorado, o que coincidiu com a manipulação e a exploração das mulheres.” (Capra, O ponto de mutação, p.38). Que visão de mundo contribui para dominação da natureza e sancionou a exploração das mulheres? Quem já leu o autor que foi citado acima sabe que a resposta é: a compreensão de mundo cartesiana. No fluir deste texto pretendo, de maneira muito simples, caracterizar essa compreensão de mundo para, em seguida, colocá-la ao lado da compreensão de mundo holística, a qual ainda está bastante distante da maioria de nós, apesar de estar tão perto. Tão longe, tão perto!
 

 
           Descartes, assim como Bacon e Newton, é um patriarca da ciência moderna. Com ele surge uma nova forma de perceber a realidade, o universo, a natureza, diversa da compreensão de mundo medieval. Esta nova percepção do cosmos determina todo um conjunto de ideias e valores, que, por sua vez, modelaram nossa moderna sociedade ocidental. Na perspectiva medieval a natureza era orgânica (viva), isso significa que, a natureza era vista como um todo vivo, a terra ainda era considerada um organismo vivo e mãe nutriente. “A noção de universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundo converteu-se na imagem dominante da era moderna”. (Idem, p. 49). A substituição da concepção orgânica de natureza pela metáfora do mundo como máquina inicia com Descartes, um gigante do século XVII, com a sua divisão entre matéria e pensamento e com o seu método de raciocínio (o caminho) para se chegar à verdade, o método analítico-dedutivo. De modo simplista, o método cartesiano diz que para se chegar ao conhecimento de algo é necessário decompor aquilo que é objeto de nossa análise (um fenômeno, um problema) em partes mais simples. Qualquer fenômeno complexo pode ser compreendido quando for reduzidos às suas partes constituintes. O método de reduzir fenômenos complexos a seus elementos básicos passa ser adotado pela ciência. 
          O método cartesiano torna-se o método científico. E, assim, tudo aquilo que não se ajustava a esse método, tudo aquilo que fugia dele foi descartado, colocado de lado, desprezado. O método científico (o caminho, considerado adequado para se chegar à verdade) tem uma poderosa influência sobre o modo como se compreende o mundo, enfim, sobre o pensamento ocidental. De acordo com o método reducionista, o mundo nada mais é do que um todo formado por partes, distintas e independentes, que se organizam de acordo com leis matemáticas (exatas) ou leis causais. A noção de partes faz com que o mundo seja comparado a uma máquina perfeita e, portanto, não a um organismo vivo. Dentro dessa visão mecanicista, a imagem da natureza passa a estar intimamente relacionada com o mecanismo de um relógio. É claro que essa compreensão não se restringe a natureza senão que envolve também os organismos vivos: plantas e animais são considerados simples máquinas enquanto que os seres humanos não são mais do que máquinas habitadas por almas.
 

 
          Outra contribuição cartesiana decisiva foi o cogito cartesiano: o “Penso, logo existo”. A partir disso se deduziu duas coisas: primeiro, que o homem é um ser racional, ou seja, que a essência do homem reside no pensamento; segundo, temos a conclusão de que mente e corpo (matéria) são duas coisas separadas, distintas e independentes, ou seja, há uma cisão entre o eu pensante e o mundo, e isso, por sua vez, ocasiona uma cisão entre o eu e a natureza. Deixamos de nos sentir parte de um todo, passamos a compreender a esfera humana e a esfera natural como sendo dois âmbitos distintos, passamos a nos sentir superiores por ser racionais, passamos a usar a nossa razão como ferramenta para dominar e controlar a natureza. Essa divisão cartesiana entre res cogitans e res extensa “nos ensinou a conhecermos a nós mesmos como egos isolados existentes “dentro” dos nossos corpos; levou-nos a atribuir ao trabalho mental um valor superior ao do trabalho manual ...” (p.55). Ela conduz a uma mudança de comportamento das pessoas em relação ao meio ambiente: se antes era “crime” ou antiético uma prática destrutiva, agora, tal prática não pode mais ser julgada, pois, a natureza é compreendida como algo que esta aí para ser conhecida, controlada, dominada. Como diz Capra: “a concepção cartesiana do universo como sistema mecânico forneceu uma sanção “científica” para a manipulação e a exploração da natureza”. Ou seja, é como se pelo fato da natureza (que funciona como uma máquina) ser diferente, independente e inferior a homem, então, ele está autorizado a se tornar senhor e dominador dela. 
      A concepção cartesiana, reducionista, mecanicista e egocêntrica, foi confirmada por Newton. Ele forneceu uma consistente teoria matemática do mundo ao formular as leis gerais do movimento para todos os corpos no sistema solar, das pedras aos planetas (idem, p.58-59). Em outras palavras, “o universo newtoniano era, de fato, um gigantesco sistema mecânico que funcionava de acordo com leis matemáticas exatas” (idem, p. 59). Assim, a partir do século XVIII se estabelece definitivamente a visão mecanicista do mundo, que, no inicio do século XX já, tinha perdido a sua força, pois as duas descobertas revolucionarias (a da teoria da relatividade e da teoria ou mecânica quântica) pulverizaram os principais conceitos da compreensão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana (idem, p.69). Com a nova física uma nova e consistente visão de mundo está ganhando vida, está criando corpo. Ela é conhecida, de maneira geral, como holismo (do grego holos, “total”, inteiro, completo).
 

 
         “Em contraste com a concepção mecanicista cartesiana, a visão de mundo que está surgindo a partir da física moderna pode caracterizar-se por palavras como orgânica, holística e ecológica ou ainda de visão sistemática. Nessa perspectiva, o universo deixa de ser visto como uma máquina, composta de uma infinidade de objetos, para ser descrito como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico” (idem, p.72). Como a teoria da relatividade e a teoria quântica contribuem para a formação desta compreensão do universo?
         Na teoria quântica constata-se que em um nível subatômico há “entidades” abstratas que possuem um aspecto dual: tanto se apresentam como partículas (entidade de volume muito pequeno) quanto como onda. Essa natureza dual também é apresentada pela luz e, desse modo, as entidades duais passaram a ser chamadas de partículas de luz, nome que mais tarde é substituído por quanta e, atualmente, conhecido como fótons. De modo simples e resumido podemos dizer que a natureza dual das partículas de luz passou a ser entendia como sendo duas imagens de uma mesma realidade, ou seja, como dois aspectos que se complementam. Além disso, tornou-se claro que as partículas subatômicas não possuem significado enquanto entidades isoladas, mas só podem ser compreendidas enquanto interconectadas. Portanto, como afirma Capra, “as partículas subatômicas não são “coisas” mas interconexões entre as “coisas”, e essas “coisas”, por sua vez, são interconexões entre outras “coisas”, e assim por diante. Na teoria quântica nunca lidamos com “coisas”, lidamos sempre com interconexões” (idem, p.75). Neste sentido, a nova física revela que o mundo, a natureza, não pode ser decomposto em unidades ínfimas e que existem independente uma da outra. O que há, então, é, em última instância, uma unicidade no universo já que se penetramos no nível das partículas subatômicas não nos deparamos com elementos (partes) isolados e de existência independente, mas um conjunto de conexões entre as várias “partes”. O que existe, por certo, é a interconexão ou uma teia de relações. Como se torna difícil separar qualquer parte do universo do seu todo, como qualquer parte possui conexões com o universo como um todo, é provável que cada parte (cada evento individual) receba influencia do todo. De maneira bastante simplista podemos dizer que cada um é o todo, que o todo está em cada um, o um é determinado por suas conexões com o todo. Como não é possível conhecer precisamente essas conexões, então, podemos sustentar que eventos individuais são determinados pela dinâmica do todo e não por relações de causa e efeito.
 

 
       Na Física subatômica o “universo começa a se parecer mais com um grande pensamento do que com uma grande máquina” (idem, p.81.) Nela o universo passa a ser concebido como uma rede cósmica, isto é, como uma teia de relações que, por sua vez, é dinâmica. Foi a teoria da relatividade que se revelou a essência dinâmica das partículas subatômicas e, portanto, mostra que a matéria está em um estado de constante movimento, interação, transformação. A descoberta de que a massa é uma forma de energia e, assim sendo, pode ser transformada foi fundamental. Isso faz com que partículas subatômicas sejam compreendidas como feixes de energia. A energia, por sua vez, “esta associada à atividade, a processos, o que implica que a natureza das partículas subatômicas é intrinsecamente dinâmica” (p.85). As partículas subatômicas, são, então, compreendidas como padrões dinâmicos. Assim, temos que, os átomos formam a matéria, a qual, por sua vez, consiste em partículas, partículas que não são entidades separadas, mas são padrões interligados (que se envolvem mutuamente) de energia num contínuo processo dinâmico (p.89).
         Orientados pelas descobertas da física atômica e subatômica, descobertas que vão além da visão cartesiana do mundo e a mecânica newtoniana, caminhamos rumo a uma concepção holística e dinâmica do universo. Nós transcendemos a imagem do universo como uma máquina e o vemos como “uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados”, ou ainda, “como um todo dinâmico e indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico. No nível subatômico, as inter-relações e interações entre as partes do todo são mais fundamentais do que as próprias partes. Há movimento, mas não existem, em última análise, objetos moventes; há atividade, mas não existem atores; não há dançarinos, mas somente a dança” (p. 86). Tudo não passa de uma dança, a dança da energia! Se é assim, se as partes somente são o que são na inter-relação com o todo (de modo que é o todo que determina o comportamento das partes) então, não podemos dizer que existe uma separação entre nós e a natureza, entre nós e o universo e, mais do que isso, só somos o que somos porque mantemos essa conexão com o todo. O reconhecimento de conexão entre o eu e o mundo natural, o reconhecimento de que a proteção da natureza é proteção de nós mesmos, é o primeiro passo para o reencantamento do mundo.

Este texto foi criado com um conjunto de várias citações do livro Ponto de mutação, de F. Capra. Optei por manter várias citações por acreditar que não conseguiria oferecer uma explicação melhor que a do próprio autor.

Um comentário:

  1. Interessante esta análise, e de como me fez interpretar o inatismo do próprio Descartes como reminiscência do próprio Universo para nós seres humanos, o racionalismo deveria ser, portanto, o vínculo que nos conecta ao todo e não o que nos coloca superior. Gostei muito.

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